Você é decadente?

Março de 2017, Depeche Mode anuncia show no Brasil, e a louca aqui já compraria os ingressos dias depois. Detalhe: o show foi em março de 2018, um ano depois. A antecedência fazia sentido: os fãs brasileiros da banda já estavam esperando havia 24 anos! A última vez que estiveram no Brasil foi em 1994, no extinto Olympia, em São Paulo. Eu não fui, ainda estava digerindo Depeche naquela época, ou melhor, não tinha maturidade pra entender exatamente do que se tratava. Pra mim era só uma boa banda new wave.

Em 1995, a banda passaria por sua maior dificuldade. Dave Gahan, o vocalista, seria considerado clinicamente morto  por dois minutos após uma overdose de heroína. A cabeça compositora da banda, o guitarrista Martin Gore, estava com problemas de saúde mental, e o tecladista, Alan Wilder, deixaria a banda naquele ano. Até aí, fizeram seus dois melhores álbuns, Violator (1990) e  Songs of faith and devotion (1993).

Com 37 anos de carreira (conhecemos poucos que chegaram tão longe, certo?), 110 milhões de discos vendidos, shows para 30 milhões de fãs, 14 álbuns de estúdio, várias indicações e premiações, eles conseguiram se reinventar e seguir em frente. É impressionante a energia do frontman nos seus 55 anos de idade, na época, canta (muito bem, por sinal), dança como uma bailarina, rodopia, rebola, se conecta com a plateia, é um intérprete da sua arte, verbal e corporal. O guitarrista Martin Gore canta tão bem quanto Dave e nem precisa dançar, porque quem cria as melodias e as letras do Depeche não precisa fazer mais nada.

Alguns estudiosos até lançaram um aforismo, goreism (goreísmo), relativo ao modo de composição de Gore. Ele coloca acordes menores e mais sombrios em lugares que teoricamente não dariam certo. E, sim, dão supercerto, pra nossa alegria! O ótimo baterista, Christian Eigner, o terceiro principal integrante, o tecladista e programador Andrew Fletcher, e o excelente tecladista e baixista, Peter Gordeno, completam o sucesso da banda. Com claras influências de Pink Floyd, David Bowie, Leonard Cohen, Kraftwerk, Joy Divison, entre outros, arrisco dizer que, no palco, Dave foi influenciado por uma só pessoa, Freddie Mercury. Bobo ele, né?

Uma banda que se consagrou no new wave e pós-punk e conseguiu passar pelo rock alternativo, industrial, indie rock, synth pop, pop rock e dance rock, sem perder a identidade, merece toda a nossa devoção. E, por falar nela, em setembro de 2019, lançaram o documentário Spirit in the forest (tem na Netflix), com partes da Spirit tour e depoimentos emocionados dos fãs, incluindo o de um brasileiro. Representamos bem os fãs.

E Depeche Mode faz aquilo que é o objetivo de toda arte: transcender e tornar você melhor do que estava antes de vivenciá-la. Os fãs falam em como a música e as letras os fizeram passar por divórcio, preconceito, doenças e perdas, de uma forma mais leve e consciente. Sem contar que, sim, a forma como são mostradas as entrevistas e as músicas vão saciar sua vontade de ouvi-las; é tudo bem dividido.

Lembranças do show

O show do Depeche em 2018 foi um dos melhores da minha vida, pela espera, pelos acompanhantes, pela reunião das melhores músicas em um único show, pelas boas lembranças a que elas me remetem. Where’s the revolution?, principal música da turnê não poderia soar mais atual nessa época de Trump/Brexit, título que cai muito bem para nós brasileiros também, não é mesmo? Fico triste quando vou a um show e as pessoas só esperam pelos hits. As pessoas vibraram na Strange love (se bem que foi uma versão acústica, muita gente não gostou) e na Enjoy the silence, nas outras foi puro entretenimento, pista de dança, pra mim chega a ser uma heresia em tempos de Google Translator A sensação catártica de Cover me e os melismas quase etéreos de Martin, recriando bem a atmosfera do Dark side of the moon, do Pink Floyd, são os meus maiores registros lembrança desse show. Ainda bem!

Dia 8 de novembro deste ano, o Depeche Mode entrou para o Rock & Roll Hall of Fame junto com Nine Inch Nails e Whitney Houston, pois a premiação não se trata apenas de rock, o importante é premiar artistas que fizeram a diferença na música e que tiveram seu primeiro álbum lançado há mais de 25 anos: tem que ter currículo pra entrar lá, e Depeche tem, merecidamente.

Se você acha que Depeche Mode é só uma banda de música eletrônica, sugiro ouvir o álbum Songs of faith and devotion, já citado aqui, e depois me conta o que achou das guitarras distorcidas, aquilo é rock, meus amigos! Se você quiser conhecer a essência da banda e sua identidade, sugiro Violator, também citado aqui.

No francês, Depeche Mode significa moda decadente, aquilo que todos fomos, somos ou seremos: imperfeitos. Como quando ficamos tristes ou não resolvemos todos os problemas… Podemos nos permitir ser decadentes, de vez em quando.


Patricia Fawkes é cantora e compositora de indie rock, apaixonada por Depeche Mode e não liga de se sentir decadente, de vez em quando.

 

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