Por Luiz Domingues
Se há um aspecto que eu valorizo na obra e postura de um artista, é a maneira pela qual ele expressa com verdade as suas inspirações; convicções e intenções. Tal valor, que era inerente, automático e abundante em artistas que surgiram em décadas atrás, diluiu-se com o tempo, a privilegiar as cartas marcadas em prol das ações perpetradas pelo marketing predatório da parte de quem enxerga a arte da pior maneira possível.
E talvez seja algo sintomático, professado por aspirantes a artistas, que envenenados por tal manipulação odiosa dos meandros do show business, entram na música com o sonho de serem famosos, mas sem nenhum apreço pela música em si e a ignorar o senso do que é a arte.
E muito menos a auferir a importância da cultura para o engrandecimento da civilização humana. Portanto, quando deparo-me com um artista que traz essa marca vintage e admirável, como ponto de honra em sua obra, alegro-me imensamente em verificar que nem tudo está perdido e ainda temos idealistas a resistir, com bravura.
É o caso de Paulo Valério M. da Silva, conhecido popularmente como “Pevê”, um artista que reza pela cartilha dos velhos ideais do Rock, a trazer no bojo o Blues e o Folk, e mostrar uma dignidade artística, admirável.
Pevê é compositor e multi-instrumentista. O carro chefe entre os instrumentos que toca, é a guitarra, mas ele mostra-se desenvolto em diversos instrumentos de cordas e nos teclados, portanto, gravou praticamente todos os instrumentos, sozinho, com exceção da bateria e de alguns instrumentos de percussão, onde recorreu a dois amigos, ótimos músicos, por sinal, para abrilhantar o trabalho (Leandro “Pirata” Rosa na bateria e Almirenio Barbosa dos Santos, na percussão).
Nesse seu primeiro álbum, denominado: “Pevê”, a marcar bem o seu nome artístico, o artista foi além e colocou em sua obra, um retrato de sua alma, a mostrar-nos as suas (ótimas) influências e a maneira pela qual enxerga o mundo, ou seja: com poesia, porém a apresentar também uma boa dose de crítica aos valores que considera nocivos dentro da nossa sociedade, portanto a propor reflexões mais aprofundadas.
Musicalmente, a riqueza sonora que nos apresenta com esse disco, é grande e também diversificada. Em seu cabedal, passeia fartamente pelo Blues-Rock, Folk-Rock, Blues, Hard-Rock e por belas baladas com sabor Pop.
É explícito o apreço de Pevê pelo período dentro do Rock (e da música em geral), chamado como: “late sixties/early seventies” e não por mera coincidência, considerada a fase de ouro da história do Rock, por diversos historiadores e sem querer impor a minha idiossincrasia, e tampouco suscitar mágoa para leitores que discordam desse ponto de vista, devo acrescentar que concordo plenamente com tal ditame.
Sobre a parte gráfica do CD, sem dúvida que impressionou-me positivamente a sua concepção. Na capa principal, há uma concepção simples, mas eficaz e até importante para um artista solo que faz o seu debut fonográfico, ou seja, além de denominar o disco apenas com o seu nome artístico, a ilustração a mostrar uma arte desenhada do rosto do artista, com predomínio das cores verde e violeta, corrobora com tal predisposição. É como se ele desejasse dizer: -“Prazer, Pevê”… ou seja, não poderia ser uma forma melhor para apresentar-se ao grande público e por quê não dizer (?), ao mundo.
O encarte apresenta uma riqueza no tocante ao texto, no sentido que além de uma ficha técnica caprichada, com direito a presença de todas as letras das canções (imprescindível, todo disco deveria ter isso como praxe em seu encarte), há uma explanação do artista sobre cada faixa, onde ele conta curiosidades sobre como compôs cada música, algumas particularidades sobre a temática da letra em si ou detalhes musicais muito interessantes. Gostei muito dessa delicadeza do artista em elucidar o seu ouvinte, sobre os meandros da sua obra. E na parte interna do encarte, um mini pôster do artista a carregar uma velha craviola em mãos, a posar em uma paisagem paradisíaca, com o predomínio da cor violeta.
Sobre o áudio, gostei do som abafado, com pouco uso de processamento digital moderno e sobretudo pelo uso comedido de reverberação. Ao soar assim, em muitos momentos pode até confundir o ouvinte ao induzi-lo a achar ser uma gravação feita nos anos setenta, com equipamento analógico. E os timbres, são muito bons, em linhas gerais, de todos os instrumentos, a reforçar o conceito sobre haver um propósito da parte do artista e prontamente adotado por quem o assistiu na parte técnica da gravação.
Sobre as faixas, a primeira canção chama-se: “Gaivota”. Trata-se de uma belíssima canção com teor Folk, acentuado. Lembrou-me de imediato diversos artistas brasileiros dos anos setenta, que tão bem transitavam entre o Rock e o Folk, com uma musicalidade absurda e poesia, caso do Secos & Molhados e tantos outros que marcaram tal década.
Impressiona a camada formada por cordas acústicas, mas a riqueza do arranjo vai além, pois contém um lap steel intermitente e as intervenções do sintetizador, Mini Moog, com um timbre avassalador, ultra anos setenta, chega a emocionar, por si só. É como se em meio a um show do Beto Guedes nos anos setenta, aparecesse de surpresa, músicos do calibre de Keith Emerson ou Rick Wakeman para tocar com maestria tal intervenção. A canção apresenta detalhes bons da guitarra (o uso da caixa leslie em alguns trechos, por exemplo, muito bonito) e a base com baixo e bateria, também atua com muito colorido, além da percussão sutil, mas muito eficaz, com o carrilhão nos momentos certos para acrescentar singeleza. E as gaivotas falam ao final.
“Na Cidade”, a faixa subsequente, quebra o bucolismo da faixa anterior ao iniciar-se com a sonoplastia de um buzinaço, ao introduzir a paranoia urbana total, mas logo somos salvos por um Blues-Rock bem ritmado, a convidar-nos a dançar, inclusive.
Riff muito bom, gostei muito do solo, bem Hendrixeano, com aquela distorção a simular o velho Fuzz e uma sequência com outro solo com timbre distinto, quase a sugerir a presença de um outro guitarrista a tocar junto. Muito boa a ideia. Sobre a letra, eis aqui uma crítica ácida ao completo desinteresse das pessoas que moram em grandes centros urbanos, concentradas, mas que simplesmente ignoram-se. Esbarram umas nas outras pela falta de espaço, mas cada uma a viver isolada em seu mundo egoísta, dentro do seu smartphone. Pevê denuncia:
“As pessoas pelas ruas / Ninguém liga para ninguém”
“Taça de Veneno”, é uma balada bluesy. Traz uma base muito agradável mediante o uso do violão batido e é entrecortada por uma guitarra ardida a fazer belas intervenções como contra-solo e outra como base, a trabalhar muito com o uso da caixa Leslie. Pelo arranjo da percussão e o sentido rítmico da canção, que parece flutuar na sua pulsação, lembrou-me o trabalho do “Traffic”, quando temas assim poderiam durar a vida toda, pela sua intensa beleza, a ouvir-se com imenso prazer a turma formada por Winwood; Wood & Capaldi.
Em sua letra, a proposta é aprofundar a discussão sobre o individualismo egoísta dentro da sociedade de consumo e sem sentido e que tais. Pois é, a solidariedade ainda é desprezada pela maioria, mas no fundo, os hippies estavam certos. Veja este trecho:
“Quais serão os postulados ? / Da moderna civilização ? / Se ainda não sabemos / Nem ao menos dar as mãos”…
“Meu Coração Quer Te Ver”, é um slow blues com intensidade e emoção. Pelo emprego do órgão Hammond e estilo de harmonia/melodia proposto, tem muito a ver com o Pink Floyd em seus melhores dias. O solo rasga com força, São notas longas, com bendings; o criativo uso do efeito do efeito do delay e a presença de sobreposições em alguns trechos a caracterizar um solo duplo. Bateria firme e pesada, muito boa, gostei muito.
“Estrada Sem Fim” é um Blues de raiz, acústico, com fartos signos típicos do som praticado ao longo do Rio Mississippi, em sua condução. Dois violões, um na base clássica e o outro a pontuar e solar. É a prova cabal que o Rock muito brilhou quando orgulhara-se em ter nascido de tal fonte e muito perdeu quando afastou-se de sua origem nobre. A ouvir uma faixa assim, convenço-me pela enésima vez que o caminho é o ”religare” com as raízes.
“Vem Comigo”, também é bem Bluesy. Tem a característica de uma balada em linhas gerais, mas toda ambientada pelo Blues. A interpretação vocal do Pevê, nesta faixa, ficou bem no estilo do guitarrista carioca, Frejat e nem sei se é uma influência concreta para ele, veja bem o leitor, mas assemelhou-se, em minha percepção. Gostei da levada em 2/4, com ótimo solo e presença de uma base com órgão Hammond, bem robusta.
A próxima faixa, “Querem Tua Cabeça”, é um Rock super balançado. Provocou-me a lembrança da grande “James Gang” por esse groove sensacional e sobretudo pelas intervenções da guitarra, a la Joe Walsh. Sobre a letra, a questão é a opressão e nesses termos, pouco importa a razão ou falta de, pois cercear a liberdade não deveria ser o modus operandi de quem deveria zelar por nós, e nunca, oprimir-nos.
“Insônia”, na verdade provoca o efeito contrário, pois tudo o que esse Blues-Rock propõe, é prender a nossa atenção com esse riff tão a ver com o trabalho do magnífico “Free”. E tal como o mestre Paul Kossoff o faria, Pevê faz a guitarra chorar em um solo muito bom. Sobre a letra, aí sim a questão da insônia faz-se entender, pois o mote é o ato da criação do artista, muitas vezes motivado no avançar das madrugadas a observar a Lua pela janela e absorto no silêncio das ruas. Neste caso, valeu a pena passar a madrugada em branco, pois saiu uma bela composição da parte do Pevê.
“Coisas Simples” é o nome de uma balada muito bonita. Gostei da ideia inicial em começar com um dedilhado e sumir, para depois de alguns segundos a música reiniciar-se. O baixo é simples mas funcional e dá para sentir um estalo proveniente do médio anasalado, que eu apreciei. A sinceridade expressa na letra, chamou-me a atenção:
“Falo das coisas como elas são / Não me interessa a aparência / O que importa na vida / É deixar falar o coração”
Só por esses versos, eis aí a exemplificação do que eu observei lá no começo da resenha, sobre um artista ser genuíno, autêntico com os seus princípios. Bravo, Pevê, acertou em cheio a questão.
Para encerrar, a última faixa apresenta o tema instrumental: “Chegada”. Trata-se de um belo passeio de violões e bandolim, adocicado por um lap steel muito bonito e a ter como base, um piano simples, porém correto e também um synth bem agudo e belo. Tema curto, mostrou mais uma vez a versatilidade de Pevê como multi-instrumentista e assim a provar que não basta aprender a tocar vários instrumentos, mas saber organizar um bom arranjo é fundamental para enriquecer uma canção.
Como álbum debut, está mais do que aprovado o trabalho e além do que já elenquei, resta-me acrescentar que está aberta a porta do futuro para o Pevê e a expectativa para os novos trabalhos só pode ser a melhor possível.
Nesses termos, o fato da última faixa de seu disco denominar-se: “Chegada”, só pode ter sido algo profético, no sentido de que esse é apenas o começo de uma carreira promissora.
Ouça abaixo, o CD Pevê, na íntegra: Eis o Link para escutar no You Tube:
https://www.youtube.com/watch?v=7geJSnXuVS0
Gravado e Mixado no Estúdio Green Box de Santo Amaro da Imperatriz-SC
Masterizado no estúdio VTonello, de Porto Alegre-RS
Técnico de Gravação e Mixagem: Marcelo Stock
Auxiliar de Mixagem: Paulo “Pevê” Valério
Técnicos de Masterização: Vini Tonello e Egisto Dal Santo
Projeto Grafico/Lay Out capa e encarte: Luiz “Pinky” Maia
Ilustrações: Jhasuá Rodrigues
Fotos: Claudia Laurent; Marcelo Stock e Luciano Moraes
Textos: Paulo “Pevê” Valério
Produção Geral: Paulo “Pevê” Valério
Músicos:
Paulo “Pevê” Valério: Voz & Backing Vocals, Guitarra, Violões, Craviola, Baixo, Steel Guitar, Teclados e Percussão;
Leandro “Pirata” Rosa: Bateria e Percussão; Almirenio Barbosa dos Santos: Percussão.
Para conhecer melhor o trabalho do Pevê, acesse o seu site:
Página no Facebook:
https://www.facebook.com/PeveGuitarra/
Canal do Pevê no You Tube:
https://www.youtube.com/channel/UC07b44iKkufasjth_YXrNcg