EP Teko Porã / Teko Porã

   Por Luiz Domingues

 

Artistas de rua são muito comuns na Europa, Estados Unidos e em outros países, não necessariamente de primeiro mundo, mas, claro, predominantemente em tais territórios. No Brasil, cuja nação arvora-se em ser multifacetada, culturalmente a falar, e supostamente aberta a manifestações culturais não usuais, na prática, ainda existe um preconceito enorme para com artistas que se expressam pelas ruas; em meio às estações de metrô e em outros locais públicos.

Nos últimos anos, esse panorama tem melhorado, não posso negar, mas acredito que ainda esteja muito aquém do ideal. Em São Paulo, onde vivo, percebo que os espaços públicos vêm sendo ocupados por muitos artistas versados por diversas vertentes, ao empreender as suas performances pelas praças públicas e estações do Metrô.

Eu já vi de tudo: de atores a declamar monólogos, a mágicos a perpetrar pequenas sketches de ilusionismos; muitos artistas sob vocação circense a realizar exibições acrobáticas; além de muitos artistas plásticos a pintar, desenhar etc. Mas a grande predominância da arte praticada pelas ruas das cidades, fica por conta mesmo dos músicos e, de fato, aumentou muito a frequência de artistas a tocar instrumentos e cantar pelas ruas de São Paulo, nos últimos anos.

Mostra-se salutar pelo aspecto da livre expressão artística, no entanto, mantém também o seu lado obscuro, na medida em que não obstante ser uma experiência rica para o artista, o ato em estar a exercer a sua arte em meio ao povo, nas ruas, denota também a absoluta falta de oportunidades para a maioria esmagadora, que simplesmente vive à margem da difusão cultural “mainstream” e, por conseguinte, das chances para apresentar-se em teatros; casas de espetáculos e centros culturais munidos por uma infraestrutura de som; luz; cenografia; camarins e conforto para o seu público poder apreciar a sua obra artística, de uma forma integral. Nesses termos, tenho visto artistas oriundos de diversos ramos da música a criar situações sob total improviso para apresentar-se.

De bandas de Rock sensacionais a combos de Jazz e Blues com músicos de alto quilate técnico; músicos sob a orientação da MPB mais intimista, na base do violão & voz; grupos folclóricos latino-americanos com instrumentos típicos; corais e percussionistas afrobrasileiros, enfim, a diversidade é enorme, ainda bem.

Um grupo que  me chamou a atenção em particular e cujo disco de estreia, homônimo, chegou às minhas mãos por intermédio do rocker, ator e agitador cultural, Kico Stone, é o Teko Porã.

A banda Teko Porã

Já os conhecia de vista, ao vê-los a circular por estações do metrô, notadamente as que eu mesmo mais uso, perto da minha residência, a citar as estações Ana Rosa e Vila Mariana do metrô de São Paulo. Jovens bem apessoados, com visual de artistas saltimbancos, mezzo-ciganos / mezzo hippies sessentistas, chamam a atenção a andar pelas redondezas, a carregar os seus instrumentos.

Na formação desse primeiro EP, (o grupo já foi um sexteto, anteriormente), trata-se de um quarteto vocal e instrumental, formado por dois rapazes e duas moças, que utilizam instrumentos acústicos tradicionais (violão; violão de 7 cordas; violino; bandolim; acordeom; bandoneón; vários instrumentos de percussão etc.

Em meio às estações de metrô onde costumam apresentar-se, tocam costumeiramente as suas canções autorais e muitas releituras para clássicos da música brasileira e internacional, a encantar os transeuntes que se dispõem a perder alguns minutos de sua vida acelerada, parar um pouco o seu frenesi diário, respirar e ouvir uma boa música. Primeiro ponto: esses jovens são ótimos instrumentistas e vocalistas. Nem todo mundo que toca na rua possui essa qualidade, e isso já é um mérito a mais para o Teko Porã.

Segundo aspecto: no caldeirão de influências que a sua obra baseia-se, só há a predominância de ótimos exemplos como referências que eles têm em sua formação musical/cultural. Ao ouvir o seu EP de estreia e a assistir os vários vídeos disponíveis de suas performances ao vivo pelas estações do Metrô e praças públicas, fica patente que cresceram a ouvir música Folk proveniente de diversas etnias e culturas; MPB da Velha Guarda; música de raiz caipira; Jazz  Cigano; Soft Rock em geral, e mais uma série de vertentes absolutamente incríveis e fora do esquadro da anticultura/subcultura que domina o panorama cultural do Brasil, há anos.

Isso explica o fato desse grupo, com tal quilate artístico, não frequentar o espaço na mídia, apesar do talento enorme que possui, fora a capacitação musical milhas acima da média, sob o ponto de vista técnico e teórico. Por um lado, ainda bem que não compactuam com o status quo dessa perversidade cultural que domina a difusão mainstream, mas, por outro, o grupo padece pela falta de reconhecimento e apoio que merece obter em larga escala.

O disco

Sobre o EP em si, a produção é muito enxuta e, assim, gostei demais do áudio, que foi sensível por privilegiar os timbres naturais advindos dos instrumentos acústicos usados. Contém a pressão sonora de uma gravação digital moderna, mas nada que comprometa a extrema doçura das canções e, sobretudo, os timbres dos instrumentos e vozes desses artistas.

A capa é muito bonita, a apresentar um tecido bordado, multicolorido e com o nome da banda sob relevo, em destaque. É simples, mas muito funcional e expressiva no sentido de que denota através da imagem e nas cores, sobretudo, o colorido multicultural que é a proposta artística do Teko Porã.

Aliás, cabe acrescentar que a expressão, “Teko Porã”, significa “Bem Viver”, no idioma indígena “guarani”. A sua formação apresentada neste trabalho é a de um quarteto, com Marília Calderón (voz; guitalelê; acordeom; bandoleón); Pablo Nomás (violão de 7 cordas); Juan Morales (bandolim) e Fernanda Leal (violino).

No disco, houve a presença de dois ex-componentes da banda, como André Ladeia (violino) e Léa Gonçalves (violino), além de outros quatro convidados em participações especiais: Renan Monteiro (percussão); Antonio de Souza (violino); Fabio Aguiar (trompete), e Rafael Massi (washboard).

O disco foi gravado em três estúdios: Mosh, Carbonos e Mono Mono, com a mixagem e masterização concluída no Carbonos. O projeto da capa ficou a cargo de Maria Renata Morales. Produção de Heron Coelho e Teko Porã.

Faixa a faixa

A primeira faixa do disco é: “A Velha Nova”. Por conter o violino como protagonista, a desenhar a sua melodia primordial, gostei muito do arranjo, com as cordas a fornecer o suporte com pausas estratégicas, além de um “staccato” dramático contido na parte B, que realçou demais a composição.

É bem inspirado no folk europeu, em essência, mas notam-se amálgamas múltiplas, a misturar conceitos. Contém muito da música cigana típica de países do leste europeu, mas também realça algo sob inspiração andina, sutil. Lembra as imagens de Charles Chaplin, no sentido de que o seu vagabundo adorável tem muito a ver com as andanças do próprio, Teko Porã, pelas ruas de São Paulo, a espalhar beleza e doçura em meio ao caos urbano agressivo instaurado no cotidiano da megalópole. É muito bonita a construção da melodia principal e André Ladeia brilha com a sua técnica ao violino.

“Quem Souber” é um achado. Lembra de certa forma o trabalho do Grupo Rumo, no início dos anos oitenta, que trabalhou com uma grande preocupação em criar música com conceitos nada comerciais, e assim buscar referências em aspectos somente valorizados normalmente por musicólogos, e, portanto,  circunscritos aos grupos acadêmicos de estudiosos da universidade.

Marília Calderón em ação. Foto: Viviane Entenza.

Nessa circunstância, a canção detém um sabor a evocar a MPB da Velha Guarda, com uma brejeirice deliciosa, e a voz de Marília Calderón proporciona-nos tal experiência. É como se estivéssemos dentro de um trem antigo, ao estilo “Maria Fumaça”, rumo ao interior do Brasil, no início do século XX, a apreciar todos aqueles signos inerentes da cultura de tal época. Absolutamente incrível. Tal obra lembra em alguns aspectos, uma canção infantil, principalmente pelo desenho fragmentado da melodia, ao dividir as sílabas, quase como se contivesse uma intenção pedagógica. Mas há o contraponto, quando nas partes B e C, a melodia assume um formato mais intenso, a estabelecer um jogo de palavras dos mais interessantes.

Gostei bastante das intervenções do bandolim, com toques “flamencos”, de Juan Morales, ao demonstrar técnica e versatilidade. A harmonia é muito bonita e só valorizou as suas intervenções. Pablo Nomás também solta a mão com o seu violão de 7 cordas, em intervenções curtas, mas muito bonitas, além de Fernanda Leal ao violino, ser ótima.

“Quem souber não me dirá /  Qual a hora de partir /  Seu lugar onde será /  Você tem que descobrir”

Apenas pelos primeiros versos da canção, é possível imaginar que a melhor solução é ouvir tudo e descobrir sozinho o prazer dessa imersão poética.

“Folhas Caídas” passeia entre a toada; o madrigal renascentista e o Pop Rock sofisticado que há anos eu não escutava, desde o trabalho dos Secos & Molhados, além de um certo “quê” de Folk norte-americano, via Bob Dylan, mas que também poderia ser o som de Zé Ramalho em seu “Chão de Giz”, tranquilamente. Pelos créditos do encarte do álbum, suponho que sejam de Antonio de Souza as intervenções com seu violino entre o erudito e o cigano, mas a soltar algumas frases que remeteram-me ao Blue Grass lá do Mississippi.

“Até onde vai a vista / Só pântanos e neblina / Nem um pássaro se arrisca a cantar / Há folhas caídas em chamas, e nós cavando a grama com a pá”

Apesar da letra ter uma proposta deveras lúgubre, claro que há beleza nessa poesia, e eu gostei muito.

“A Peste da Dança” tem a providencial participação do percussionista, Renan Monteiro. Gostei bastante desse elemento a mais para a canção.

Tema instrumental, tem o seu lado cigano forte, mas também uma irresistível influência Yiddish. Agradaria em cheio em meio a uma festa cigana e também eventualmente em um Bar Mitzvah, acredito.

A quinta faixa, também instrumental, contém o explícito título : “Samba Eslavo”. Muito animada, mais parece uma melodia eslava, na prática, e se detém algo de brasileiro nessa receita, talvez seja através das sutilezas executadas pelo violão de sete cordas e na percussão, ainda que nada que seja explicitamente brasileiro, há a inserção feita pelo percussionista convidado, Renan Monteiro, a remeter nesse sentido.

Já em “Solidão do Joca”, a música de raiz do interior calou fundo.

Absolutamente adorável a toada caipira com os instrumentos de cordas a esbaldar-se em seus respectivos arranjos, e assim buscar elementos típicos dessa realidade brejeira. É como escutar uma velha canção da cantora, Inezita Barroso, mas com uma letra espirituosa a misturar signos prosaicos interioranos, com referências da cultura Pop moderna.

“Tava em casa solitário cabulando academia, quando o noticiário anunciou… epidemia / Descobri que era doença aquela minha solidão, fui no Dr. pedir licença pra tomar medicação  / Dessa doença eu não entendo, tinha mais de mil amigos todos os dias… no Facebook”…

“Navio Canção” lembra um fado português, de certa forma, mas a acrescentar tem alguns elementos quase experimentais, ouso dizer, principalmente por conta do violino executado pelo convidado especial, Antonio de Souza, que buscou fraseados cerebrais em alguns momentos.

“Poucos Acasos” mergulha no Jazz festivo de New Orleans, com aquele sabor “creole”, sensacional. Pablo Nomás comandou a interpretação vocal com bastante firmeza nesta faixa. Espertíssimas, igualmente, são as intervenções dos músicos convidados, no caso, Fabio Aguiar ao trompete e Rafael Massi a comandar o “Washboard”. Gostei muito da melodia principal e do arranjo geral da canção.

A letra trouxe algo de antropológico, mas é também o fruto das observações feitas por eles mesmos os membros do grupo, acredito, ao observar as pessoas apressadas a passar ao seu redor, quando das suas apresentações em lugares públicos, permeadas pelo seu frenesi cotidiano, a lutar para manter uma vida massacrante, em eterna busca pela sobrevivência, e a ter como melhor perspectiva, alguns prazeres hedonistas, apenas.

“Todos em volta sempre a olhar / Os poucos acasos que devemos passar / Cada um deles com suas circunstâncias / Novas perspectivas, poucas esperanças / Nascer, crescer, perpetuar / Envelhecer, morrer aqui”…

Em suma, trata-se de um disco adorável de estreia desse grupo e, por ser curto em sua duração, na verdade a configurar-se como um “EP”, deixa os ouvintes com vontade para escutar mais, e assim ansiar por um novo trabalho, que espero, seja em breve.

Nem apenas de apresentações de rua eles têm se valido para divulgar o trabalho, pois eu soube que já tocaram em unidades do Sesc, o que é ótimo e dá-lhes a melhor estrutura para que a sua arte seja exercida de uma maneira mais adequada. Contudo, eu deixo a ressalva de que tal grupo precisa de muito mais apoio do que tem obtido, pois um trabalho dessa qualidade precisa alcançar camadas maiores do público, sem dúvida.

Existe vários vídeos do Teko Porã disponíveis no portal de Internet, You Tube, a mostrar muitas de suas apresentações em estações de Metrô, e muitas dentro dos vagões em movimento, além de apresentações pelas ruas e praças de São Paulo.

Um documentário bem sucinto, fala sobre o trabalho desse jovem grupo folk, com depoimentos positivos e trechos de suas apresentações regulares.

 

E abaixo, o álbum homônimo, objeto desta resenha, para degustação do leitor / ouvinte:

 

Para maiores informações do trabalho do Teko Porã, acesse a sua página no Facebook :

https://pt-br.facebook.com/TekoPora

Contato direto com o Teko Porã :

projetotekopora@gmail.com

Eu recomendo o Teko Porã, com ênfase !

 


Luiz Domingues é músico e escritor.

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