EP Carcere / Gandharva

Por Luiz Domingues

Como eu sei que as aparências enganam, não me deixei levar  por deduções precipitadas assim que recebi o EP (para quem não sabe, trata-se um disco com uma porção mais reduzida de canções do que um CD tradicional), “Carcere”, do Gandharva, uma banda paulista vinda de Atibaia, no interior, cidade localizada bem perto da capital de São Paulo. Isso por que o título da obra, e a ilustração da capa em si, sugeriu-me inicialmente algo explicitamente claustrofóbico, com um ar angustiante ante a liberdade limitada.

Sob uma imagem difusa, uma pessoa com feições indefinidas é mostrada em uma janela a aparentar estar sob um momento de agonia, sem escapatória e cercada por mãos ameaçadoras que denotam opressão, violência, ameaça…

Em outras épocas, sem a prudência que o avançar da idade forneceu-me como bônus de experiência de vida acumulada, eu já chegaria à conclusão que o trabalho da banda rezava pela cartilha do Punk-Rock ou do Heavy-Metal, mas, antes de estabelecer conjecturas antecipadas, coloquei o disco para tocar e aí a sonoridade surpreendeu-me agradavelmente.  

Da esquerda para a direita: Anderson Xavier (bateria); Nikolas Rupa (Voz e Violão); Wellington Pires (Percussão e Voz); e Marc Matherson (baixo).

O Gandharva já inova pela sua formação primordial, pois consiste de violão; baixo, bateria, e percussão, portanto a ausência de uma guitarra já mostra-se como algo não usual, em uma primeira leitura.

Após ouvir canção após canção, verifiquei que a sonoridade é leve, mas os rapazes não se furtam a cometer alguns momentos mais pesados, e mesmo sem o “drive” da guitarra, expressam densidade de uma forma bastante convincente. Um outro ponto importante é que a banda apresenta múltiplas influências boas, portanto, dentro desse ecletismo, alcançam um resultado que agrada em cheio os ouvintes que seguem orientações sonoras díspares entre si, sem nenhum problema. 

Ótimos músicos, imprimem uma condução cheia de balanço em vários momentos do disco; densidade dramática em outros, como já mencionei, e delicadeza, com muitas sutilezas harmônicas e melódicas através dos bons arranjos que criaram de uma forma coletiva e também no âmbito individual.

Gostei também da interpretação vocal e das letras, com questões de ordem existencialista na maior parte do tempo, e aí justifica-se o título do álbum, e a concepção da capa, a exprimir a ideia da angústia; cerceamento da liberdade, falta de perspectivas etc. Mesmo ao abordar temas sombrios, não achei que o astral abaixou ao ouvir as canções, e, pelo contrário, é uma audição agradável pela qualidade musical que conseguiram criar e executar.

 

A primeira faixa, “Me Faça”, tem uma levada em torno do Blues-Rock, mas com concepção moderna, densa. Gostei muito da percussão criativa de Wellington Pires, e de fato, um percussionista de ofício e que se proponha a pensar os seus arranjos no contexto das canções, tem que ser aplaudido, pois tais intervenções, se jogadas a esmo, podem até estragar o resultado final de uma gravação, mas aqui, muito pelo contrário, caem como uma luva.

A voz de Nikolas Rupa, que também é o violonista da banda, mostra-se agressiva, arranhada, com forte emissão e ele dá o recado com contundência. Há uma guitarra para dar apoio, mas que na verdade trata-se de um violão, que certamente deva ter passado por “plug-ins” de simulação de amplificadores e que foi executada pelo músico convidado, Filipe Rocha. Gostei das suas intervenções delicadas, mediante solos a usar timbres limpos, e o bom uso do “slide”. A bateria de Anderson Xavier é enxuta, gostei muito da precisão e da clareza dos timbres agudos, provenientes dos seus  tambores e caixa. Marc Matherson faz um baixo encorpado, muito seguro, a realçar bem a condução das canções. Ele segura tudo na retaguarda, a garantir uma direção firme para a banda. 

Já na segunda faixa, “Vida Longa”, observo uma bela incursão por algo próximo da MPB, com influências boas e nítidas. Sob uma excelente condução do violão, os demais vão junto na mesma proposta sonora e, assim, passeiam pelas dinâmicas interessantes que a canção oferece.

Mais uma vez uma guitarra limpa que me lembrou o timbre de Mark Knopfler, trouxe colorido à canção. A voz do percussionista, Wellington, apoia em duo em alguns momentos para tornar a melodia ainda mais incisiva. Gostei da letra, bem poética:

“Vasto vento sopra o corpo todo em movimento”…

“Cada despedida, cada tentativa, um dedo na ferida”… 

 

Na terceira faixa, “Carcere”, que dá título ao EP, eis o peso que eu mencionei no início da resenha. Denso, trata-se de um riff que lembra muito o som “grunge” dos anos noventa, notadamente de uma banda como o “Alice in Chains”.

Gostei bastante da melodia e a mudança brusca da parte “A” para o refrão, ao sair da densidade soturna, para algo bastante doce, melódico. Há a presença de um teclado sutil, lá no fundo da mixagem, colocado como uma sombra quase imperceptível, mas que dá um incrível colorido à canção. O baixo de Matherson, desenha bonito, através de uma linha bastante criativa, e a percussão alterna momentos de explosão, incríveis na condução das congas, com calmaria em outros instantes, portanto, eu apreciei muito esse arranjo. Apesar do título, a letra não descamba para imagens angustiantes, embora marque presença, com personalidade. 

“Não aceito mais teu jogo sujo, /Não me aceito mais me ver no escuro /Não aceito mais me ver de luto”…

 

Gostei do forte sabor Folk da canção: “Vida Nova”, porém ela apresenta-se mesclada ao Rock urbano. Nos momentos mais rurais, as cordas e a percussão brilham, a especificar dedilhados feitos ao violão, dos mais agradáveis e na parte mais pesada, mais uma vez as sonoridades mais modernas fazem-se presente. A interpretação vocal visceral da parte de Rupa, contém letra muito interessante. Gostei bastante da frase: “Tem gente com medo que o medo, acabe”, pois isso é muito perturbador em ouvir-se, entretanto, é uma das maiores verdades para quem vive a loucura da vida urbana, em meio ao caos social da atualidade. Uma afirmação dessa monta é para fazer pensar, em meio a uma reflexão das mais pertinentes.

 

“Lobo em Pele de Cordeiro” é um blues rasgado, forte na concepção musical ao ponto de induzir o ouvinte a embarcar nele e viajar para bem longe.

“E não me fale com persuasão, pois o meu tédio não tem emoção” desvela as relações efêmeras que não levam a nada. Se isso é viver encarcerado em uma mentira existencial, o recado está dado.

 

 

 

“Viva a Diferença”, parece a canção mais Pop do álbum, mas na verdade detém uma seriedade indiscutível. Gosto da melodia e parece ser uma marca estilística do Gandharva, compor canções que transitam entre partes densas e doces, o que considerei um mérito da banda. Mais uma vez aparece um teclado, desta feita mais proeminente, na forma de um rápido solo de órgão Hammond, ou um simulador dele, mais provavelmente, porém, sob uma boa e certeira intervenção.

“Viva a diferença, viva a liberdade,

viva a sua vida,  conquiste a sua parte”…

Mais um bom recado, sem dúvida.

 

No cômputo geral, o trabalho do Gandharva mostra qualidade, revela-se criativo e executado por bons músicos; compositores, cantores e arranjadores.

Esse trabalho foi gravado no estúdio Box Music, com direção geral de Nikolas Rupa e produção de “Jibóia”. Masterização de Balieiro.

Gostei do áudio do disco, com timbres bem definidos, peso, clareza e sem excessos da parte de certas frequências indesejáveis, mas que geralmente sobressaem-se após o processo da masterização.

Além dos quatro componentes citados, Filipe Rocha tocou teclados e violão, como músico convidado. O projeto gráfico ficou a cargo de ID Make Media

 

A palavra, “Gandharva”, em sânscrito, significa na cultura indiana e baseada nos “Vedas” (escrituras milenares e sagradas em sua concepção), um tipo de casamento arrumado pelas famílias, sem interferência dos noivos, na escolha do cônjuge, um do outro. Espero que o Gandharva tenha um longo casamento musical, portanto, e que os seus componentes continuem a fazer as suas escolhas sonoras livremente, ao contrário do que a palavra estrangeira sugere, em sua carreira, e lance mais trabalhos de qualidade artística, como este.

Para conhecer melhor o trabalho da banda, procure a sua página na Rede Social Facebook:

https://www.facebook.com/bandagandharvaoficial/?fref=nf


Luiz Domingues é músico e escritor.

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