CD Patagonia / Blind Horse

Por Luiz Domingues

Nos tempos atuais em que vivemos, onde a qualidade musical passa ao largo da difusão cultural mainstream, artistas genuínos que se prontificam a trabalhar, mesmo sob condições inóspitas no que tange às oportunidades democráticas (digamos assim), merecem aplausos dobrados. Como se não bastasse a sua arte a provar-se autêntica, feita com labuta e honestidade (longe dos esquemas arquitetados pelos marqueteiros e os seus famigerados lacaios, os “formadores de opinião”), ainda ter que lutar contra uma máquina poderosa a atrapalhá-los acintosamente, é mesmo uma luta inglória.

E se está ruim para artistas que militam na música em geral, o que dizer então dos Rockers, que são marginalizados por natureza e mesmo quando sob um breve período da história da música no Brasil, refiro-me aos anos oitenta, o Rock teve uma certa notoriedade na difusão oficial, vamos ser francos, quem se beneficiou na verdade fora um seleto grupinho de artistas escolhidos pelos marqueteiros de então, e na verdade, desde que rezassem pela cartilha da vertente, Pós-Punk em voga, portanto, “Rock” mesmo não era…

Diante de tal panorama, quando eu observo artistas a lutar bravamente para lançar álbuns e a tocar ao vivo da melhor maneira possível, visto que as oportunidades são  escassas também no campo das apresentações, claro que me animo e sinto esperança por dias melhores. Ao final de 2015, eu publiquei em meu Blog 2 uma entrevista com a super promissora banda carioca, “Blind Horse”, ao repercutir o lançamento de seu primeiro EP: “In the Arms of Road”. Leia ou releia essa entrevista: 

http://blogdoluizdomingues2.blogspot.com.br/search?q=Blind+Horse 

Foto promocional do Blind Horse por ocasião do lançamento de seu excelente LP, “Patagonia”.

Recentemente, 2017, os rapazes lançaram o seu segundo álbum, denominado “Patagonia” e demonstram o mesmo caldeirão de influências ótimas já mostradas no EP anterior e, sim, revelam ainda maior consistência e amadurecimento do trabalho, embora o tempo transcorrido entre uma obra e a outra seja relativamente curto. 

Mediante a observação de uma capa muito bonita e um trabalho de estúdio muito bom no que tange ao som, a salvaguardar a qualidade do áudio. A maioria das canções é cantada em idiomas estrangeiros (inglês em predominância e uma em castellaño), e apenas uma em português. Naturalmente que os rapazes apostam as suas chances maiores no mercado internacional e, ao relembrar tudo o que eu disse nos primeiros parágrafos, realmente não dá para criticá-los por isso. Se o mundo está a maltratar a música neste século XXI, em curso, imagine no Brasil onde todos os esforços são feitos para valorizar a subcultura e, pior ainda, a anticultura de massa…

Portanto, fazer Rock com esse padrão de qualidade e comprometimento com assumidas influências tão boas do passado glorioso do gênero, já faz da obra e da banda vitoriosas. Mas o disco vai muito além da hombridade artística e realmente destaca-se pela qualidade. Trata-se de seis faixas, o que em princípio caracterizaria um EP, com duração mais curta, mas como não existe linearidade na metragem das canções, o disco tem duração longa, no padrão dos velhos LP’s. Sobre as faixas, muitos são os seus atrativos.

Patagonia

Na faixa de abertura, por exemplo, “Patagonia”, canção título do álbum, observa-se uma densidade sonora muito grande. Canção com quase 16 minutos de duração, mostra-se pesada, com troca de ritmos em seu decorrer, ao apresentar desdobradas, inclusive. A sua linha melódica primordial lembrou-me o estilo do Ronnie James Dio, com uma carga interpretativa dramática. 

E muitos solos inspirados de guitarra, além de um solo de sintetizador Mini Moog com timbre ultra setentista e que remeteu aos melhores discos da carreira solo do tecladista britânico, Rick Wakeman (refiro-me aos seus álbuns onde Wakeman foi menos sinfônico e mais Prog Rock tradicional, tais como: “The Six Wives of Henry VIII”; “No Earthly Connection” e “Criminal Record”, por exemplo). Há por destacar-se igualmente a presença de um órgão Hammond com uso de Caixa Leslie rápida, muito interessante.

Partes distintas a propor mudanças bruscas ficaram muito interessantes, inclusive com o uso de looping contínuo em alguns trechos, um recurso bem setentista e claro, muito salutar. Sobre influências, é o tal negócio, a minha orientação pessoal é totalmente 1960 & 1970, portanto eu tendo a ouvir música a estabelecer associações com múltiplos artistas que conheço e aprecio, cuja época de atuação centrou-se nessas duas décadas citadas. Sei de antemão que a base primordial dos componentes do Blind Horse também é essa, mas existe igualmente conexão com sonoridades mais contemporâneas da parte deles e das quais eu nem consigo detectar, mas deduzo que existam. Por exemplo, nessa faixa, ao ouvir as suas múltiplas passagens, além do Ronnie James Dio já citado (e acredite, Dio para o meu conceito é “modernoso” e sua verve metálica, incomoda-me…), pensei em bandas de searas diferentes, como: “Camel”; “Beggar’s Opera”; “Caravan” e até o “Curved Air”. Em partes mais lentas, a lembrança do “Nektar” também ocorreu-me, mas, como eu já disse, sei que os rapazes também têm suas influências modernas, portanto, não descarto que as suas inspirações versem nesses termos. Ao final, uma improvável incursão ao Funk-Rock levou-me direto à lembrança da “James Gang”, com o grande Joe Walsh a swingar para valer na sua guitarra.

“Stun Bomb Blues”

Na faixa seguinte, é inevitável haver uma constatação em relação à primeira. Após uma faixa longa, com densidade e extrema intensidade, temos em “Stun Bomb Blues”, uma antítese. Trata-se de uma faixa curta, uma vinheta praticamente, e, mais inusitado ainda, uma performance solo do vocalista, “a cappela”, com a voz bem processada no áudio. E a mostrar força interpretativa, sim, ao parecer quase um monólogo feito por um ator dramático. Muito interessante.

“Rock’n Roll Me”

Chega a terceira faixa, “Rock’n Roll Me”, com uma dose setentista fortíssima. Lembrou-me o som vigoroso do “Thin Lizzy”, ao misturar influências diferentes e até díspares, tais como o “Cactus”, principalmente ao considerar-se a linha melódica primordial da canção. Uma parte com acentos fortes chamou-me a atenção por um detalhe que tende a passar despercebido ao ouvinte mais distraído, mas eu achei muito bonito. Ao acentuar junto, na campana do seu prato “Ride”, o baterista foi muito criativo e feliz pelo timbre extraído.

“Noite Estranha”

A faixa seguinte, “Noite Estranha”, é a única cantada em português e começa de uma maneira bastante instigante, ao evocar o cinema nacional marginal, com Rogério Sganzerla na veia, graças a uma locução extraída de seu filme: “O Bandido da Luz Vermelha”. Ouvir um diálogo de 1968, travado entre os personagens protagonizados pelos atores, Helena Ignês e Paulo Villaça já chamaria a atenção por si só, mas o fato é que a música é muito boa, ao lembrar bastante o trabalho do “Deep Purple” em seus melhores dias, com riffs fortes, e a conter a atuação da guitarra toda pontuada com notas isoladas e não necessariamente com acordes, uma marca registrada do Ritchie Blackmore, a realçar a ideia do Deep Purple como influência, e, para reforçar, o órgão Hammond atua bastante, igualmente e com Jon Lord no pedaço, o púrpura profundo acentuou-se.

“Soul Locomotive”

A quinta faixa, chama-se: “Soul Locomotive” e aí o blues chegou, que beleza! Recentemente (2017), um guitarrista, desses virtuoses do mundo do Heavy-Metal declarou que ao perder o elo com o Blues, o “Metal” degringolou. Eu já penso bem diferente e acho que o metal (com o perdão aos amantes desse gênero e dos quais tenho muitos amigos), pouco tem a ver com o Rock e, na verdade, esse rompimento de elo já começou décadas atrás com ele mesmo, o Metal e o Punk Rock. Mas a declaração desse músico norte-americano, tem um fundo de verdade, no sentido de que todo o sentido do Rock está no Blues e quanto mais distanciamo-nos de sua raiz, mais iremos maltratar o Rock ou arremedo de Rock, como temos visto nos dias atuais.

Gostei novamente das intervenções do órgão Hammond, e a voz com efeito de eco distante. O uso de vibrato e outros efeitos em intervenções pontuais de guitarras sobrepostas, também agradou-me, certamente. Uma segunda desdobrada na música com um solo muito inspirado, lembrou-me a veia Bluesy do “Pink Floyd”, quando a banda flutuava para David Gilmour fazer a sua Fender Stratocaster chorar, e o Blind Horse conseguiu tal resultado semelhante, não tenho dúvida.

E, ao final, uma intervenção de áudio traz um cântico muito bonito a evocar o Blues remoto da raiz mais profunda, aquele autêntico coro dos escravos nos campos de algodão, que transmutavam a sua dor e humilhação em arte, in natura, e muito bela, apesar de melancólica.

“Los Heraldos Negros”

Mais uma surpresa ao final. O disco encerra-se com outra faixa curta (“Los Heraldos Negros”), para destoar das longas digressões das faixas de maior duração. É impossível não pensar-se no “The Doors” como inspiração, pois a banda faz uma base contínua, mezzo blues/mezzo psicodélica (o órgão com timbre de Farfisa ou Vox, traz o elemento psicodélico, sem dúvida), enquanto um poema declamado quase de forma monocórdica, é puro Jim Morrison. 

A letra em castellaño é oriunda de um poema de autoria de César Vallejo, autor peruano, sendo um dos mais importantes poetas latino-americanos do século XX, e, certamente, que, ao musicar tal poema com esse quilate, o Blind Horse lembrou-me a contundência de artistas da seara do “Folk Protest Song”, latino-americano, como Mercedes Sosa e Violeta Parra. Tal poema é também título de um livro de César Vallejo, lançado em 1919, portanto, mais um ponto muito positivo apresentado pelo Blind Horse para esse disco, ao trazer uma obra poética da mais alta relevância. E tem tudo a ver com a expressão do sofrimento nos campos de algodão, não resta dúvida de que existe uma conexão sutil nesse texto do poeta peruano. Muito interessante trazer essa peça tão diferente do bojo do álbum, para justamente encerrá-lo, ao fugir do esperado.

Sobre a performance individual dos componentes, só tenho elogios. São músicos de alto gabarito, criativos e muito técnicos. Isso reflete-se também na produção do áudio do disco, por haver privilegiado os timbres vintage, compatíveis e imprescindíveis eu diria, ao considerar-se as ótimas influências que eles carregam na sua formação pessoal. Portanto, no cômputo geral, eis aí uma banda que confirma as ótimas expectativas geradas quando do lançamento de seu primeiro EP e indo além, avança, para mostrar um grau de desenvolvimento nítido.

Gravado e lançado em 2017. Produzido por Sergio Filho no Mitinga Studio, na cidade de Barra de São João / RJ.

Formação do Blind Horse neste álbum:

Alejandro Sainz: voz, violão e gaita

Rodrigo Blasquez: guitarra e backing vocals

Eddie Asheton: baixo e backing vocals

Maicon Martins: bateria

Músico convidado:  Ronaldo Rodrigues: teclados

Capa, criação e lay out final: Alejandro Sainz

Foto da capa: Eliseo Miciu

Contatos com a banda:

Site oficial: https://blindhorseband.com/

Página do Facebook: https://www.facebook.com/blindhorseband

Canal do You Tube: https://www.youtube.com/channel/UCRGFG4crcIKqUL21nSByjtg/feed

Bandcamp: https://blindhorse70.bandcamp.com/album/patagonia

 


Luiz Domingues é músico e escritor.

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