A luta pela justiça social e contra o preconceito explodem na música das Clandestinas

Por  Nelson Souza Lima

Surgida em Jundiaí, grande São Paulo, em 2017, a banda Clandestinas se destaca não apenas por sua música, mas também pela postura contundente diante de uma sociedade opressora, na visão das integrantes.

Lutar contra o machismo, misoginia e preconceito é o intuito do trio Camila Godoi (contrabaixo/voz), Alline Lola (guitarra/voz) e Natália Benite (bateria/voz).

Em maio de 2020 elas lançaram o primeiro álbum, autointitulado com treze faixas, as quais têm influências distintas como Mercenárias, Cássa Eller, Elza Soares, Linn da Quebrada, Letrux, Karina Buhr e Mulamba.

Além das referências musicais o grupo também se inspira em pensadoras/escritoras que fazem a sociedade refletir, entre elas: Djamila Ribeiro, Amelinha Teles, Danielle Tega e Heleieth Saffioti.

“Nós acreditamos que a construção de uma sociedade mais justa se dá através da inclusão de todos os corpos no acesso a direitos e à cidadania independentemente dos gêneros (homens, mulheres e não-bináries) com os quais estes corpos se identificam”, atestam.

Para difundir o trampo, as garotas contam com intensa mobilização coletiva. “Divulgar o disco, o clipe de “Nenhuma a menos”, o lyric vídeo de “Rotina”, além de nossa participação no filme “Pluma Forte”, da Coraci Ruiz, dá-se, principalmente, através de uma rede de pessoas envolvidas na militância feminista. E, também, por “mala direta”, enviando e-mails para o Brasil e exterior, tem se mostrado bastante valiosa”, pontua o trio.

E o trabalho árduo tem dado resultado com canções executadas em rádios gringas dos Estados Unidos, Austrália e Espanha.

“Em março começaremos a tocar em rádios chilenas também. Para nós é uma grande felicidade nos sentirmos acolhidas, cantando em língua portuguesa, em outros países. E desejamos que o fortalecimento advindo deste intercâmbio seja de mão dupla”, afirmam as meninas.

Sobre a atual situação política, o trio “considera esta onda neoconservadora como uma reação às conquistas de direitos de grupos populacionais vulneráveis como mulheres, pessoas e população LGBTQUI+. É um momento histórico perverso, mas é o momento histórico em que nos coube viver, resistir e lutar pela construção de uma sociedade mais justa”.

Confira abaixo a entrevista com a banda, que respondeu todas as perguntas em conjunto:

Combate Rock – Primeiro gostaria de saber como surgiu a banda que tem apenas quatro anos de trajetória. Vocês vêm de Jundiaí, na grande São Paulo, e o nome já dá uma ideia de algo contra os padrões e sistema. Falem sobre o início da Clandestinas.

Clandestinas – A banda Clandestinas surgiu, em 2017, da necessidade de se fazer ouvida em seus questionamentos sobre padrões de gênero e sexualidade, utilizando a música como ferramenta de luta. Em 2017, começamos a tocar nossos instrumentos, a cantar, compor e a fazer arranjos para as nossas músicas. Tudo de forma coletiva, horizontal e com muito acolhimento. O nome “Clandestinas” também é uma forma de lembrar os vários corpos e vivências marginalizados em nossa sociedade e que, de certa forma, precisam viver numa clandestinidade imposta por uma sociedade que deseja invisibilizar estas vidas e, muitas vezes, exterminá-las. O nome também remete à luta pela descriminalização do aborto, pois, no Brasil, o aborto é realizado, sistematicamente, de forma clandestina, colocando em risco a vida de muitas mulheres. As nossas canções já foram executadas em programas de rádio fora do Brasil, em países como Estados Unidos, Austrália e Espanha. Em março, uma rádio do Chile já nos avisou que tocará músicas nossas. Para nós é uma grande felicidade nos sentirmos acolhidas, cantando em língua portuguesa, em outros países. E desejamos que o fortalecimento advindo deste intercâmbio seja de mão dupla. Em 2019, participamos do filme “Pluma Forte”, exibido num extenso circuito de festivais de cinema, no Brasil e no mundo. É uma obra-prima da diretora Coraci Ruiz e nós tivemos a felicidade de participar, como banda, em uma cena bastante intensa e emocionante a qual foi gravada durante a nossa apresentação na Parada LGBT de Jundiaí, em 2018, nas vésperas do segundo turno da eleição presidencial.

CR – As letras são contestatórias, impondo resistência a tudo que é errado: machismo, racismo, patriarcado, LGBTfobia. Inclusive, a Camila coloca que toca contramacho (contrabaixo). Sua resistência esbarra na misandria (ódio contra homens). Uma sociedade com homens no comando já deu o que tinha que dar?

Clan – Nós discordamos desta avaliação: combater o machismo e o patriarcado não tem nada a ver com uma suposta misandria. Quando a Camila usa o trocadilho “contramacho” para se referir ao seu contrabaixo ela se permite autodenominar “contramachista” e esta expressão remete a uma postura contrária àquela de pessoas que se engajam, de forma voluntária e consciente, no machismo. Nós acreditamos que a construção de uma sociedade mais justa se dá através da inclusão de todos os corpos no acesso a direitos e à cidadania independentemente dos gêneros (homens, mulheres e não-bináries) com os quais estes corpos se identificam.

CR- Como foi lançar o álbum (autointitulado com treze canções) no meio da pandemia, em maio de 2020, e disponível somente nas plataformas digitais. Como está sendo o trampo de divulgação nas redes?

Clan – A divulgação do nosso álbum, do vídeo clipe da canção “Nenhuma a menos”, do lyric video da canção “Rotina” e de outros registros, como a nossa participação no “Pluma Forte”, dá-se, principalmente, através de uma rede de pessoas envolvidas na militância feminista. E, também, a divulgação por “mala direta”, através de e-mails enviados para o Brasil e para o exterior, tem se mostrado bastante valiosa.

CR- Todo o estafe da Clandestinas é composto por mulheres (roadies, técnicas de som, divulgação). Mas e nos shows? Como é a reação do público masculino? Vocês fizeram muitos shows, antes da pandemia? Sofreram e sofrem atos de preconceito?

Clan – Nós priorizamos agregar mulheres e pessoas não-binárias para trabalharem conosco e as construções coletivas que vivenciamos na gravação do álbum, na gravação do clipe e em nossos shows é muito fortalecedora para todas/es. O nosso último show foi no Sesc-Jundiaí, no dia 4 de março de 2020. Entre 2017 e o início de 2020, nós realizamos um número elevado de apresentações, principalmente, em escolas, institutos federais, universidades e espaços de militância: geralmente, fazemos uma roda de conversa sobre feminismo e, depois, fazemos o show. O fato de nós termos o nosso próprio P.A. e o nosso próprio backline permite nos apresentarmos em espaços que não são casas de shows. E sim, a nossa arte já sofreu rejeições preconceituosas por abordar temas que confrontam o machismo, o patriarcado e a hétero-cis-normatividade.

CR – Em 2021 o Riot Grrrl completa três décadas. Gostaria de saber qual a identificação de vocês com o manifesto que surgiu em Olympia, no estado de Washington, EUA, e segue sendo um importante marco na luta das bandas femininas em busca de igualdade e direitos.

Clan – A nossa formação, enquanto militantes feministas e LGBTQIA+, deu-se paralelamente ao mundo da música e, pode-se mesmo dizer que, no início, não conhecíamos, pessoalmente, este espaço tão rico e importante formado pelas bandas que comumente são consideradas “herdeiras” do movimento Riot Grrrl. Nós trabalhamos com educação popular e o movimento Riot Grrrl não fazia parte do nosso repertório, antes de começarmos a aprender a tocar, em 2017. A leitura de obras da Djamila Ribeiro, da Amelinha Teles, da Danielle Tega, da Heleieth Saffioti, entre outras e a nossa proximidade de movimentos como as Promotoras Legais Populares (PLPs) foram determinantes em nossa formação, como militantes. Em termos de música, As Mercenárias, Luana Hansen, Cassia Eller, Elza Soares, Mulamba, Letrux, Karina Buhr, Linn da Quebrada, entre outras/es, nos impactaram com suas posturas, com suas letras e com as suas musicalidades e ainda são referências muito importantes para nós.

CR- De que forma sua música contribui para uma sociedade mais equânime?

Clan – Nós desejamos que as nossas canções cheguem a todas/es/os como um acolhimento e um fortalecimento, nestes tempos tão difíceis, em todo o mundo. Estamos juntas/es/os e vamos resistir às violências deste nosso momento histórico. E, juntas/es/os, vamos construir uma sociedade mais justa. As nossas canções são, também, força para as nossas lutas e um convite à reflexão para construirmos uma sociedade mais justa.

CR- A luta das mulheres em busca de seus direitos vai além da música. Como veem a luta das mulheres atualmente, uma vez que a ascensão de Jair Bolsonaro despertou o vírus do ódio numa explosão homofóbica e misógina sem controle. O que acham do atual governo?

Clan – Nós podemos considerar esta onda neoconservadora, a nível mundial, também, como uma reação às conquistas de direitos por grupos populacionais vulneráveis como mulheres, pessoas negras, população LGBTQIA+ etc. É um momento histórico extremamente perverso, mas é o momento histórico em que nos coube viver, resistir e lutar pela construção de uma sociedade mais justa. E, juntas/es/os, vamos vencer, no tempo que for possível, esta guerra.

CR – Muito se fala que o rock é desunido, com muitos “rock stars” egocêntricos e prepotentes. Se entre os homens há muitos atritos gostaria de saber como são as relações entre as bandas femininas.

Clan – Nós sempre recebemos um acolhimento bastante carinhoso e fortalecedor das bandas compostas por mulheres e pessoas LGBTQIA+ e este acolhimento foi muito importante para vencermos, ao menos em parte, os nossos medos e inseguranças.

CR – Vocês já tiveram contato ou tocaram com bandas gringas representativas do rock feminino? Tipo o Gossip, da Beth Ditto tocou em São Paulo alguns anos atrás, antes de terminar em 2016. Como é o contato com os grupos de fora?

Clan – Ainda não vivenciamos este tipo de experiência. Não temos muito contato com bandas de fora do Brasil, o que neste contexto de pandemia ficou ainda mais complexo.

CR- O rock em geral encontra dificuldades em conseguir espaço na mídia, isso vale pra bandas masculinas e femininas. Como é a relação de vocês com a mídia e a busca de espaço pra tocar?

Clan – Nós estamos muito felizes com o acolhimento que recebemos da mídia alternativa, não hegemônica. O trabalho que vocês da Combate Rock, da Wishplash e tantos outros blogs e zines realizam nos coloca em contato direto com um público que nos fortalece e nos inspira. Quanto a espaços para tocar, nós raramente tocamos em casas tradicionais da chamada “cena” do rock e, até o início da pandemia, a maior parte das nossas apresentações ocorreu em escolas, institutos federais, universidades e espaços de militância.

CR- Infelizmente a pandemia paralisou tudo. Como têm se virado com lives e divulgar o trabalho da banda?

Clan – Nós ainda não participamos de um festival online e nem transmitimos nenhum show conosco, tocando, “ao vivo”. O primeiro festival em que estaremos presentes será o Caio Indica Fest e a nossa contribuição será através da exibição do vídeo clipe da canção “Nenhuma a menos”. Nós não temos equipamentos próprios que permitam uma transmissão, “ao vivo”, de um show com uma qualidade satisfatória e, para que, um dia, seja possível transmitir uma apresentação nossa, “ao vivo”, será necessário sermos convidadas por um festival ou instituição que ofereça essa estrutura ou que financie o aluguel de uma estrutura adequada.

CR – De que forma as bandas femininas podem ser representativas dos anseios das mulheres em geral por busca de direitos e uma sociedade igualitária?

Clan – As mulheres são diversas. Os feminismos são diversos. As bandas feministas podem, apenas, ecoar e/ou amplificar, de forma parcial e incompleta, gritos de luta que são múltiplos e diversificados.

CR – Quem são suas inspirações dentro do cenário musical?

Clan – Luana Hansen, Bioma, Cosmogonia, Bloody Mary Une Queer Band, Manaminamona, Mulamba, Karina Buhr, Letrux, Elza Soares, As Mercenárias, Cássia Eller, Rita Lee entre outras/es.

CR – Um recado pra galera que tá carente de shows ao vivo.

Clan – Em nosso contexto atual, sobreviver também é um ato subversivo. Então, dentro das possibilidades de cada pessoa, protejam-se o máximo possível e aguardem que esse momento vai passar. É um momento para ter paciência. Só assim conseguiremos sobreviver a esse período e continuar a ter força para resistir a toda opressão social que nos cerca e se intensifica com tantos retrocessos. Não caia na tentação de se aglomerar, só deixará a oposição mais forte.

Para conhecer o trampo da Clandestinas
Vídeo clipe da canção “Nenhuma a Menos” (lançamento)
https://www.youtube.com/watch?v=YkViP_nv1Sk
Plalylist, no YouTube, com o nosso show no SESC
https://www.youtube.com/playlist?list=PLiW6bhjR3IiYMA5v5_sUbkNjCHOd-XVgo
Filme “Pluma Forte” (Coraci Ruiz, 2019)
https://www.youtube.com/watch?v=iA3GjlDRA9g
Lyric vídeo, canção “Rotina”
https://www.youtube.com/watch?v=TL4FZr2hexU
Plalylist, no YouTube, com o as canções do nosso álbum
https://www.youtube.com/playlist?list=PLiW6bhjR3IibmM46KdPTYqWVUfKwsO0j2

 


Nelson de Souza Lima é jornalista, repórter, resenhista e colunista musical.

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