CD Cantos da Estrada / Irmãos Ferraresso

Cantos da Estrada

Por Luiz Domingues

Há muito tempo, o processo de surgimento de novos artistas no panorama cultural mantinha um curso natural. Iniciava-se, geralmente, entre a infância e adolescência, quando a garotada começava a interessar-se por arte de uma maneira em geral e no campo da música em específico, ao admirar artistas consagrados. Tudo é lúdico e mágico nessa fase e o glamour gerado por um artista de renome normalmente proporcionava o surgimento de uma semente no âmago dos aspirantes, que frutificava de tal maneira a ser quase uma epifania messiânica.

Bons tempos esses, onde o celeiro de novos artistas foi sempre forjado pela safra boa e a perpetuar-se, uma nova geração surgia sempre amparada e inspirada pela qualidade em relação aos artistas consagrados, em detrimento a uma outra concepção, onde artistas de plástico são criados como peças meramente descartáveis por produtores embotados, obcecados por dinheiro e nada mais.

O sonho de ser artista acompanhou um grupo de adolescentes da Freguesia do Ó, um tradicional bairro da zona noroeste de São Paulo, nos idos de 1981.

Ainda adeptos da velha fórmula, eles queriam tocar, compor e cantar como os seus ídolos da música e, nessa predisposição positiva, esmeraram-se em estudos & ensaios. Sob o nome de “Leito de Pedra”, esses rapazes imberbes começaram a sua luta com galhardia, garra e com as suas respectivas mentes focadas no sonho. Em sua primeira formação, os seus componentes foram: João Carlos Ferraresso (guitarra e voz); Izal de Oliveira (baixo); Mario Moreno (guitarra); Marco Massarelli (bateria) e João Gilberto Bacchetti (voz).

O início de uma trajetória criativa

Freguesia do Ó O começo heroico dessa trajetória adolescente foi o comum de tantas outras bandas, ou seja, a trajetória forjada através de apresentações em festivais colegiais; festas, feiras e eventos públicos no bairro e adjacências. A primeira apresentação que guardam com orgulho na memória foi na sede social da Igreja do Largo Nossa Senhora do Ó, a principal do bairro, onde tocaram um repertório básico composto por canções dos Beatles e sucessos do Rock brasileiro oitentista em voga, a destacar artistas como o Ira e Lulu Santos, por exemplo. 

Um pouco além desse momento, uma mudança de formação, trouxe: Milton Moreno para substituir Marco Massarelli na bateria; o vocalista, João Gilberto Bacchetti deixou a banda e o irmão de João Carlos Ferraresso, Nelson Ferraresso, entrou na formação, como tecladista e backing vocalista.  Surgem então as primeiras composições, onde a influência maior foi o Rock dos anos setenta, em vertentes como o Progressivo e o Hard-Rock.

Bandas internacionais famosas tais como Yes, Pink Floyd, Focus, Led Zeppelin, Grand Funk Railroad, Rolling Stones e Deep Purple, entre outras, influenciavam fortemente esses garotos, mas houve também a generosa parcela de influência do Rock brasileiro e da MPB, com artistas como 14-Bis, O Terço, Milton Nascimento e Lô Borges, a frequentar a vitrola deles, o tempo todo.  

Em 1984, mais maduros e a compor e a toca bem, mudam o nome da banda para “Sigma”, que perdurou assim até o final das suas atividades, no início dos anos noventa. Antenados, frequentavam o circuito de shows de São Paulo, sempre a procurar a adequação ao mercado e assim a buscar interação com a cena musical da época. Frequentavam os teatros alternativos (Lira Paulistana, o Teatro Mambembe, os teatros de bairro da prefeitura etc), o Centro Cultural São Paulo, danceterias que promoviam shows de rock aos borbotões etc.  Mas com o fim das atividades da banda, muitas músicas ficaram engavetadas por anos, pois o “Sigma” houvera sido um celeiro de músicos e compositores de talento, mas que dispersaram pelo mundo, a tocar em outros projetos; atuar como sideman de artistas consagrados etc.

Foi quando os irmãos Ferraresso, João Carlos e Nelson, uniram forças e resolveram tirar do ostracismo essas canções esquecidas e, em 2007, gravaram o CD Cantos da Estrada. A proposta foi tocar esse projeto como uma banda, embora não tivesse sido possível reunir todos os membros originais. O trabalho criado nos anos oitenta finalmente veio à tona, e com o acréscimo de eles estarem absolutamente maduros; portanto, o fator experiência adquirida pela vivência na música nesses anos todos sob o hiato forçado foi benéfico para o trabalho.

 

O primeiro registro da banda

Com um apuro incrível, os irmãos gravaram as suas canções amparados por um belíssimo trabalho de arranjos; execução e escolha de timbres primorosas. Claro, as composições, independentemente dessa roupagem enriquecida, tinham no seu bojo, muita qualidade. Com todas as influências que acumularam durante toda a carreira, não poderia ser de outra forma: o trabalho contido no CD Cantos da Estrada é excepcional. A começar pela canção homônima do título do álbum. Pois, “Cantos da Estrada” tem atmosfera progressiva, com teclados em profusão, muito bem executados, percussão criativa e um vocal que interpreta bem a bela melodia principal.

Ouça a canção “Cantos da Estrada”

 

As músicas

“Nave Incandescente”, uma balada, com a inclusão de um interessante riff de guitarra, com ares Hard-Rock, e a voz lembra de certa forma o estilo de Cazuza, dos anos oitenta.

“Mundão”, traz roupagem em torno do Country-Rock, com execução perfeita.

“Isso Tudo Passa” lembra Cazuza novamente, na interpretação de João Carlos Ferraresso e com uma agradável intervenção dos teclados de Nelson Ferraresso, encerra-se em grande estilo.

“Girassol” contém um irresistível swing de MPB dançante, sob acento soul. Tem muito balanço na linha de baixo e uma percussão muito bem tocada e colocada. Destaco o piano elétrico de Nelson Ferraresso, com nítida influência da MPB mineira de Lô Borges.

Em “Livre da Poeira”, o violão bem brasileiro e muito bem tocado de João Carlos Ferraresso, impressiona.

“Livre da Poeira II”, é um Blues rasgado, daqueles que só os bluesman sabem extrair das entranhas.

“Gelo Seco” é um bonito tema instrumental, onde os irmãos Ferraresso e seus convidados puderam criar uma atmosfera auspiciosa.

“Amor de Verdade” é uma canção centrada no violão, onde João Carlos Ferraresso usou o recurso da declamação. Foi ousado, pois esse expediente é norteado pela linha tênue que separa a intensidade declamatória (onde exige-se talento de ator para monólogos, por exemplo) e a pieguice, onde a maioria escorrega no tobogã da cafonice. João Carlos Ferraresso acertou e incluiu-se, portanto, no primeiro rol que citei.

Nelson
Nelson Ferraresso

Nesse trabalho, além dos irmãos Ferraresso, participaram: Daniel “Lanchinho” Rodrigues (bateria); Aden Santos (baixo e guitarra); Marcel Rico (baixo) e Edu Gomes (guitarra).

Segundo Nelson Ferraresso (que aliás auxiliou-me com informações valiosas para que eu pudesse elaborar esta resenha), há planos para dar seguimento ao trabalho e naturalmente um novo CD deve sair. Torço muito por isso ! 

À espera de mais Cds do Cantos da Estrada

Ao falar da minha relação pessoal com essa rapaziada, eu, Luiz Domingues, tive um contato inusitado com eles, inicialmente em 1986. Através de uma namorada que eu tive nessa ocasião, fui assistir a um ensaio do “Sigma”, pois eles eram conhecidos dela, do bairro da Freguesia do Ó, onde morava.

Contudo, perdi o contato e somente no início dos anos 1990 fui estabelecer amizade com o baixista, Izal de Oliveira, quando ele solidificou-se como um ótimo baixista a atuar com a banda, “Caça Níqueis”, com bom trabalho na área do Blues-Rock, ao ter lançado vários CD’s, realizar muitos shows etc. E no ano de 2011, quando tornei-me integrante da banda de Kim Kehl & Os Kurandeiros, retomei o contato com Nelson Ferraresso, que é tecladista dessa banda, praticamente desde a sua fundação. Foi o meu amigo, Kim Kehl, que mostrou-me o trabalho: “Cantos da Estrada”, do qual encantei-me.

Kim Kehl, sabedor do fato que escrevo matérias em Blogs, deu-me a ideia de falar sobre esse trabalho e diante desse incentivo, ponderei sobre dois aspectos:

1) É inacreditável que um trabalho dessa qualidade artística esteja despercebido perante mídia e grande público e;

2) Eu escrevo normalmente sobre diversos assuntos e dificilmente falo sobre música, o que chega a ser insólito se considerarmos que talvez fosse o tema que mais esperariam que eu abordasse em minhas matérias. Portanto, acho que se for para falar de música, esse nicho interessa-me muito, que é o de enfocar artistas de extrema qualidade, mas com pouca ou nenhuma visibilidade na mídia.

Sendo assim, aguardem mais matérias com esse teor, doravante, pois se por um lado vemos um panorama tétrico na música mainstream, por outro, existe uma gama de artistas de muita qualidade, sem chance alguma para mostrar o seu talento, diante da massacrante opressão que forças ocultas exercem para dominar a difusão cultural de baixo nível, no Brasil.

Não vou estabelecer um discurso inflamado para expressar a minha revolta nesse sentido, mas, sim, usar o meu humilde Blog para fornecer a minha contribuição no sentido oposto, ou seja, ao mostrar artistas de verdade, com qualidade; coração e alma. E os irmãos Ferraresso, representam exatamente isso.

 


Luiz Domingues é músico e escritor.

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