Por Luiz Domingues
Em tempos de tanta dispersão, pulverização de informações e completa desconexão com as raízes, é de admirar-se quando encontramos artistas jovens que buscam fontes nobres do passado para inspirar os seus trabalhos na atualidade.
A banda “Capitão Bourbon” vai por esse caminho sem parcimônia, mas sobretudo sem medo do julgamento de quem não suporta artistas que não sigam a moda, mas o som que vem do coração. Portanto, os rapazes seguem em frente e mais do que isso, não esperam acontecer, mas fazem acontecer, ao gravar os seus álbuns, produzir shows e abrir frentes onde é possível tocar e, se não for, esforçam-se para que o show aconteça assim mesmo. Ou seja, um amor à arte que não se vê mais hoje em dia e, portanto, esses artistas resgatam até o sentido perdido de uma visão macro da cultura, o que é notável.
Tendo lançado um EP em 2013, a banda lança agora o seu primeiro CD oficial, ao apresentar sonoridades provenientes da década de sessenta, tais como a psicodelia, a passear pelo Acid Rock, acrescido de um forte apelo baseado no Blues-Rock daquela década, igualmente.
Chamado “Terra em Transe”, contém esse título inspirado declaradamente no filme homônimo de Glauber Rocha, e certamente busca o mesmo sentido libertário contido na obra do saudoso e genial cineasta baiano, ao imprimir ideias fortes, tanto expressas pela música, quanto na parte do texto, via letras. Com metragem longa, o álbum apresenta 13 faixas, todas muito interessantes e sob uma roupagem crua, com um Power-Trio básico com baixo; guitarra & bateria, mas a contar com apoio de teclados em algumas faixas, além de pontuais participações de músicos convidados para acrescentar a parte de sopros, com saxofone e trompete.
Todavia, na maior parte do tempo, predomina o Power-Trio base em ação, e não faz uso de overdubs, mas a tocar de forma crua, como se fosse ao vivo, com o baixo a segurar a base, sozinho, sem apoio harmônico, quando na hora de solos de guitarra e claro que isso traz uma verdade implícita no trabalho, ao dispensar maquiagens de estúdio, algo tão usual na música Pop da atualidade. Portanto, mais um ato de fé no Rock, da parte dessa banda, a ser admirado.
A formação atual do Capitão Bourbon, ao vivo na casa de espetáculos, Mercado Pirata, em Balneário Camboriú-SC, com uma ligeira modificação no seu line-up em relação ao que gravou o disco. Da esquerda para a direita: Eduardo Osmedio (baixo e voz); Fábio Batista (bateria e voz) e Vander Bourbon (guitarra e voz). Click de Vinicius Oliveira.
Para falar das faixas
O disco abre com a canção homônima ao título do álbum, “Terra em Transe”, que entra com um riff sob forte vocação Blues-Rock, e que lembra muito o som de grandes feras dessa vertente ao final dos anos sessenta. Eu poderia citar vários exemplos que me passaram pela cabeça, e sabedor que tais influências são de fato as mesmas dos rapazes, creio que pensamos igual nesse sentido. Gostei do solo; linha de baixo & bateria e a voz de Vander Bourbon detém uma certa similaridade em termos de timbre com o grande Luiz Carlos Porto.
Na segunda faixa, chamada “Segunda-Feira”, a aposta na psicodelia sessentista é total, com a louca inclusão do trompete pelo músico convidado, Reinaldo Soares, a criar intervenções nonsense. Outra participação muito feliz dá-se com uma linha de piano elétrico, nada usual, e cuja estranheza é muito criativa, gostei muito.
Em uma parte adiante, a banda engrena uma passagem em 6/8 com um órgão ao estilo, “Farfisa”, agudo, muito sessentista em essência. Gostei do som seco do baixo, sem sustain, também a evocar fortemente aquela sonoridade da década de sessenta. Vander canta frases como:
“Segunda Feira, o trânsito passa e você indo de bobeira, trocou as dúvidas por suas certezas, e vem a próxima Segunda-Feira”…
“Quebre as Regras”, apresenta o som do baixo do ótimo, Eduardo Osmedio, bem na frente e com peso, gostei muito. Outra vez o baterista, Uly Nogueira intervém a tocar teclados e muito bem. Ao ouvir aquele som de órgão, é impossível não lembrar-se dos Doors, mas também do Young Rascals, Iron Butterfly e outras tantas bandas daquela década maravilhosa. Gostei muito dos vocais de apoio, com intenções onomatopaicas muito boas.
Bluesman” é isso o que o título sugere, ou seja, um blues rasgado, cuja harmonia lembra a tradição de um clássico como “Key to Highway”, portanto, claro que é deveras agradável. Gostei do peso, com aquela sujeira Rocker, observada no solo ardido, e uma cozinha a pontuar com várias sutilezas na divisão rítmica, a estabelecer um arranjo muito feliz.
A letra é bastante poética, ao evocar a questão do sonho de um artista em ser um “bluesman” e assim buscar os signos típicos dessa escola, ao discorrer sobre estações de trem, ambientação rural inspiradora etc. Como é bom ver um artista
a resgatar as raízes e, nesse caso, o Blues, tão esquecido pelos pseudo Rockers das últimas décadas, é reverenciado como se deve nessa canção, ou seja, como a célula primordial de tudo que adveio na história do (bom) Rock.
“O Preço da Loucura” fala dessa outra conexão perdida no Rock, com bastante propriedade. De fato, perdemos a loucura (faz tempo) no Rock e tal elemento sempre foi primordial como uma espécie de fator surpresa, ao propiciar o toque inusitado, o diferencial, o insólito…
Sendo assim, se enxergarmos a loucura como um tipo de alimento em desuso, seria como descobrir um livro de receitas, deveras precioso e esquecido dentro de um baú encontrado no fundo do mar. Hora boa, portanto, para voltar à tona.
Gostei da intensidade da base da guitarra em contraponto com o órgão. Tal faixa é uma viagem no tempo, como se estivéssemos a ver uma banda no palco do “Whisky a Go Go” de Los Angeles, sob um delírio psicodélico em 1967. E não podia faltar o sutil toque à la Arnaldo Baptista, ao criar-se uma intervenção vocal, literalmente de louco (ou Loki). Muito bom.
“Ulysses Perdido” é um Rock’n’ Roll rasgado. Tem muito do Rock brasileiro setentista em muitos aspectos, ao fazer todo mundo botar os “Ya-Yás” para fora.
“Alma Perdida” lembra bastante os Blues clássicos dos primeiros álbuns do Led Zeppelin, com peso e sentimento mesclados. Gostei muito da guitarra, tanto na base quanto solos, com timbres marcantes, muito bom gosto nos desenhos criados e, nessa faixa, há um solo duplo aberto no pan do stereo, uma rara intervenção de overdubing.
Há também o apoio de órgão e lembra: “Since I’ve Been
Loving You” do grande Zepelim de Chumbo. A interpretação vocal de Vander, assemelha-se bem ao estilo do vocalista, Nasi, quando este enveredou pelo universo do Blues, com o seu combo: “Nasi & Os Irmãos do Blues”. Em suma, um Blues perfeito em todos os quesitos.
Em “Elixir do Amor”, a oitava faixa, o vibrato usado por Vander na guitarra é sensacional, por remeter à canção: “Crimson & Clover” do grupo, “Tommy James & The Shondells”, direto dos anos sessenta (viva!).
Tal canção é Pop, a passear pelo Bubblegum daquela década, com resvalo na Jovem Guarda e a letra, que parece romântica sob uma primeira audição, é na verdade uma ode à loucura, tal como o sonho lindo e delirante do cantor & compositor, Fábio, digamos assim.
“Oráculo Blues” é mais um blues peso pesado. Parece que estamos a ouvir o som de Rory Gallagher a tocar com o “Taste” no Festival da Ilha de Wight, em 1970, ou seja, que (ins)piração!
A décima faixa é uma releitura de uma canção do mítico/místico, Raul Seixas (que, por sua vez, inspirou-se em uma canção do Little Richard para a compô-la com outra letra, ao tratar-se de “Slippin’ and Slidin” em sua estrutura melódica e harmônica).
Chamada “Não Fosse o Cabral”, dada a coincidência de sobrenome do nosso descobridor com um ex-político/presidiário bastante criticado da atualidade, parece ser até uma canção composta hoje em dia. Mas não foi, e infelizmente mostra que o Brasil padece do mesmo mal, faz séculos e haja esforço saneador para dar jeito nisso, se é que vai dar…
Sobre o arranjo da música, gostei de tudo, vocalizações malucas com sentido onomatopaico, além do órgão e um saxofone insano, que ajudou a imprimir uma pitada do som do “Gong” nessa história. Bem, nesta altura, Raulzito e o Daevid Allen devem estar em altas confabulações com Aleister Crowley, lá do outro lado, com certeza.
“Carandiru Blues” é um blues de raiz, semi-acústico, e com letra áspera, a falar de desilusão, erros cometidos e melancolia sob cárcere privado, mas apesar dessa atmosfera lúgubre, mostra beleza poética na desolação, com certeza.
“Sombras da Noite” é uma canção densa, com peso, e um certo sabor Acid Rock, com um pé no Blues e belo arranjo. Vander, nessa interpretação, lembrou-me o vocal exasperante de Arthur Brown e a sonoridade da banda, com certa aproximação com o som de Alice Cooper (ao referir-me aos seus primeiros dois discos, com bastante experimentalismo), ou mesmo o Can, através de seuue vocalista japonês, louquíssimo, Damo Suzuki.
A última faixa, sem título, é na verdade uma vinheta, curta, provavelmente uma Jam de improviso que a banda fez no estúdio e foi gravada e acrescentada, porque ficou boa. Essa espontaneidade marcada pelo imponderável é também um recurso perdido no tempo, que a banda resgata, portanto, mais uma ação salutar. Parece o “Ten Years After” a tocar no Marquee, de Londres, por trafegar entre o Rock’n’ Roll; Blues e com certo sabor de Jazz, através de um baixo andante ao estilo do Leo Lyons, a dar o suporte para que Alvin Lee pudesse voar mediante helicóptero, enfim…
O disco foi gravado no estúdio “Corações de Pedra” de São Paulo, durante 2015 e 2016. Existe duas artes para a capa & contracapa, porque planejam, no futuro, lançar também em bolacha de vinil. É bela arte psicodélica assinada por Uly Nogueira.
A formação do Capitão Bourbon no disco foi a seguinte: Vander Bourbon: Guitarra e Voz; Eduardo Osmedio: Baixo; Uly Nogueira: Bateria, Voz & Teclados.
É bom ressalvar que Eduardo Osmedio e Uly Nogueira também mantém outros projetos musicais, entre os quais, as excelentes bandas: “Os Haxinins”, “Os Subterrâneos” e outros grupos, que vem a ser outros trabalhos fortemente identificados com a estética dos anos sessenta, sob várias vertentes e que fazem parte, portanto, da mesma confraria a que o Capitão Bourbon, pertence. Uly gravou o disco e o produziu, ao demonstrar grande versatilidade, mas não se fixou como componente, ao ceder a vaga de baterista para Fábio Batista.
Uly também chama a atenção por ter gravado os teclados do disco, e assim capturado bem a essência da década de sessenta, ao buscar timbres fidedignos e belas referências, as quais já citei quando comentei as faixas individualmente. E como se não bastasse tudo isso, ainda é o responsável pela arte e lay-out final da capa, portanto, trata-se de um artista e produtor musical completo, e com belíssimas influências em sua formação pessoal. Uma raridade nos dias atuais.
São excelentes as participações dos músicos convidados. Tanto Reinaldo Soares (trompete), quanto Fabio Bizarria (saxofone), trouxeram colorido ao disco e, mais que isso, uma porção de loucura a mais, sendo assim, uma contribuição fantástica.
Em síntese, o Capitão Bourbon, com o seu CD “Terra em Transe”, honrou o cinema de Glauber Rocha no qual inspirou-se para produzir o seu trabalho, ao buscar o sentido libertário, mediante signos de loucura inerentes e imprescindíveis, a arrancar-nos dos anos e anos em que fomos obrigados a viver sob um mundo de plástico, e a compactuar com um estilo de vida “pegue e pague”, sem contestar nada. E, principalmente, sem loucura alguma, portanto, extremamente desagradável. Que bom que alguém faça-nos aludir a um tempo onde houve sopro criativo, com gritos de liberdade a ecoar por todos os lados, a estabelecer um bombardeio de cores e magia, sob a doce psicodelia de outrora.
Eis o álbum na íntegra para a audição do leitor:
Para obter mais informações sobre o trabalho do Capitão Bourbon, acesse:
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Soundcloud: https://soundcloud.com/apitaoourbonficial