Por Luiz Domingues
Eu fico abismado quando observo manifestações oriundas da parte de diversas pessoas através das redes sociais da internet a lastimar o estado degradante em que se encontra o panorama da música e da arte em geral nesta atualidade.
A reclamação procede em linhas gerais, porém, existe um aspecto que também é evidente, a dar conta de que, as mesmas pessoas que reclamam o tempo todo, não percebem ou não querem perceber que tal panorama desfavorável não é motivado pela escassez de artistas expressivos e que tenham algo relevante a acrescentar para o espectro cultural da sociedade.
Não é o caso aqui para estender tal reflexão, então para resumir, acrescento que a degradação não passa pela falta de artistas com qualidade e principalmente através do seu sincero desejo em dar o seu recado bem embasado, mas simplesmente por haver um vergonhoso monopólio na difusão cultural mainstream a proibi-los, veladamente, ao seu livre acesso e, por conseguinte, atingir o grande público. Portanto, artistas incríveis, temos em profusão, todavia, simplesmente não estão nos programas popularescos da TV, não são convidados a ceder as suas obras para alimentar as trilhas das novelas e a sua música não toca nas emissoras de rádio, oficiais. Apenas isso…
É o caso do Kaoll, uma banda que já tem uma história significativa na cena da música instrumental, com discografia numerosa e além da sua qualidade técnica e artística, está sempre imbuída por uma sólida base cultural.
“Sob os Olhos de Eva”, é o novo álbum do Kaoll e traz em seu bojo um advento muito rico ao basear-se na obra de um livro e a seguir a modernidade tecnológica, em seu aparato de apresentação, oferta ao público, um aplicativo para ser automaticamente unido a um arsenal de ilustrações e vídeos análogos.
Sobre o livro em si, trata-se da obra homônima do pensador, Renato Shimmi. Filósofo, com graduação também em Direito e com diversas especializações, Shimmi é um pesquisador sério, com renome, e a sua fama no meio acadêmico justifica-se plenamente pelo teor de sua obra. Neste livro, Renato Shimmi apresenta uma série de ensaios a analisar a questão da unidade que transcende a questão dual enfocada no mito de Adão & Eva, proveniente do Genesis bíblico. Através de tal prospecção, com profundidade, joga luzes sobre todo o desenvolvimento da humanidade ao longo dos séculos, através da construção e quebra eventual dos paradigmas estabelecidos. Não li o livro, ainda, mas através do release da obra, chamou-me a atenção uma colocação forte de seu autor a dar ciência de que o caráter libertário em desobedecer as ordens impostas arbitrariamente foi sufocado por séculos, em uma demonstração clara da ostentação totalitária, portanto, o que foi institucionalizado como paradigma irrefutável, pode e, na verdade, deve ser contestado, sem dúvida alguma.
Assim sendo, é sob essa sólida argumentação filosófica proposta pelo pensador, Renato Shimmi, que o Kaoll concebeu o conjunto de músicas de sua mais recente obra e, somente por essa iniciativa, este álbum já demonstra conter um lastro enorme.
Contudo, vai além, pois a parte musical é riquíssima e nada surpreendente para quem acompanha a trajetória dessa banda e a qualidade inquestionável de seus componentes, individualmente a destacar-se.
O trabalho do Kaoll é fortemente influenciado por uma gama de vertentes musicais muito valiosas, mas que tem um componente em comum, o apreço (e a coragem, devo salientar), em fazer uso do experimentalismo, na contramão das regras ditadas pelos produtores musicais que atendem os interesses em prol da música Pop comercial de alto consumo e descartável. Dentre as suas ótimas influências, nota-se a presença de vertentes do Rock Progressivo setentista, a destacar-se a corrente do Krautrock, a maravilhosa escola alemã dos anos setenta, que se notabilizou na história do Rock, justamente por abrigar uma gama de artistas que usaram o experimentalismo, fortemente em suas respectivas obras.
Soma-se também nesse bojo, o Jazz, sobre algumas linhagens, o Jazz-Rock predomina, mas há gotas interessantes de outras linhas, como o Free-Jazz e o Fusion, certamente. A música erudita, sob o aspecto de suas camadas mais recônditas, marcadas pelo atonalismo, dodecafonismo e outras correntes mais radicais dentro do gênero, a música Folk, no sentido amplo da designação etc.
Na prática, o som do Kaoll é um instrumental muito versátil, a mesclar a extrema docilidade da flauta, aos solos de guitarra mais proeminentes, com pegada Rocker. Transita entre longos temas, como uma Jam Band, mas tem seus momentos mais concisos, com arranjo fechado e permeado por convenções bem arranjadas. Apresenta um arsenal de melodias, muito bom e a parte rítmica da banda é igualmente excelente, com a presença de várias batidas diferentes, a usar bem as variações nas fórmulas de compasso e claro, com toda essa categoria e ótimas influências apresentadas pelos seus membros, busca os melhores timbres, em perfeita sincronia com a preocupação em ter o seu áudio, a altura de seu quilate artístico. O álbum, “Sob os Olhos de Eva”, apresenta seis faixas. A primeira, a abrir a obra, é homônima.
Em “Sob os Olhares de Eva”, a banda apresenta uma introdução bastante instigante, a lembrar-me o trabalho de bandas progressivas bem do final dos anos sessenta, que faziam aquela transição entre a psicodelia e o iniciante gênero progressivo, propriamente dito. Alguns historiadores rotulam essa corrente intermediária como “Space Rock”, a denotar uma aproximação da música com a expansão espacial da humanidade, então sob alta voga no imaginário popular.
Logo entra uma parte intermediária onde, com muita docilidade, a flauta leva a banda para um passeio muito bonito. Mais um pouco e o Folk que surge é delicioso. Sob uma percussão bem colocada, a banda faz uma base amena, muito bem amalgamada pelo slide de guitarra. A parte final é marcada por um “looping” extremamente bonito, com maior peso e a guitarra é belíssima em sua linha de frente. Na sincronia com o livro, tal tema exprime a visão de Eva ante a oferta da serpente, a denotar a sua sede pelo conhecimento, que pelo paradigma religioso imposto-nos, é tido como algo maléfico e arrogante, por supostamente afrontar uma ordem superior, mas a proposta é a reflexão em torno do contrário, ou seja, não seria a arrogância do totalitarismo que impede a expansão do homem, portanto, o verdadeiro “mal” a ser combatido?
O próximo tema é denominado: “O Exílio da Serpente”. Tudo soa belo nessa faixa. O trabalho magnífico das cordas, da flauta e a cozinha que soa sob uma inspiração fantástica. Teclados pontuam com muita propriedade, ao trazer timbres ótimos dos velhos sintetizadores: Moog, Arp Strings e o tradicional piano vem muito bem no bojo. Lembrou-me o Jethro Tull em seus melhores momentos, com aquela capacidade ímpar que a turma de Anderson; Barre & Cia. possuía em criar arranjos com polimelodias, todas muito bem encaixadas e que obrigam o ouvinte a escutar a faixa várias vezes, para poder a cada audição, prestar atenção em um detalhe específico. A passagem quase no limiar do Hard-Rock, é ótima no trecho final, com um solo de guitarra para arrepiar.
“Kopernick” vem a seguir, e mais uma vez o trabalho das cordas é muito bonito. Tem um certo quê de música flamenca, com batidas de violão a buscar tal acento rítmico característico e mais uma vez com um belo solo de guitarra para realçar-se. Trata-se da referência à Copérnico, e a explicação que vem das estrelas a confrontar os modelos dogmáticos impostos pela Igreja.
“O Julgamento e Morte de Giordano Bruno” vai direto no âmago do problema. Creio ser desnecessário maiores explicações sobre a figura histórica descrita no título da música e o que representou como símbolo de resistência à opressão, em sua época. Em termos musicais, esse tema oferece-nos um riff deveras interessante, com a banda a manter-se nele como base primordial e deixar assim a flauta a flutuar, literalmente. Apresenta peso e leveza em perfeita unidade, eu diria. Solo final com contundência na guitarra a buscar modulação de tom e novo passeio da flauta ao final, para encerrar, e que soa, magnífico.
“A Rua contra os Reis” denota a tomada de consciência das massas, ao ir às ruas e protestar contra a opressão, com a finalidade em exigir mudanças. É muito bonita a melodia proposta pelo slide guitar e a base segue a quebrar ritmicamente, muito bem.
O último tema, “Dharma em Chamas”, busca exprimir o sentimento individual da experiência rumo à unidade final, o romper com a dualidade. Adão & Eva não devem obedecer, tampouco ser punidos, e assim fundem-se em um único ser, absoluto e transcendente. E sob tal conceito metafísico, o tema musical apresenta-se com uma deliciosa explosão sonora, a trazer fortes doses de influência latino-americana, com percussão muito forte, permeada por um forte molho caribenho. O tema é muito vibrante a lembrar bandas “freaks” com tal proposta dentro do Rock norte-americano dos anos sessenta, onde a citação ao Santana é a mais óbvia, pela sua maior projeção nesse campo. Entretanto, advém uma parte mais amena, com a flauta a comandar a boa melodia. E uma terceira parte, mais uma vez sob experimentalismo, fecha a música e o álbum, exatamente como ele iniciara-se. Ou seja, a serpente contorce-se a formar o “oito infinito”, a unidade que denota o indivisível. Em síntese, a obra é muito consistente pela parte musical e a mensagem implícita a acompanhar o pensamento filosófico do schollar, Renato Shimmi, expresso em sua obra homônima ao álbum, é perfeita.
O filósofo, Renato Shimmi, autor do livro Sob os Olhos de Eva e que inspirou a obra musical homônima, perpetrada pelo Kaoll.
Ouça na íntegra o álbum, “Sob os Olhos de Eva”, acessando o link:
A ilustração da capa é muito expressiva. Com traços simples, o artista plástico, Zé Otávio Zangirolami não precisou de grandes recursos tecnológicos para contribuir com a sua criatividade ao retratar bem o espírito da obra. Uma serpente com seu corpo a enrolar-se e formar assim a imagem do “oito infinito”, diz tudo. A serpente, demonizada pelo dogma oficial, mostra aqui uma outra chave para a humanidade, diametralmente oposta. Detalhes como o símbolo atômico, o número “Pi” e o símbolo do gênero feminino, fazem parte da ilustração mais discretamente e claro que são referências importantes para reforçar a chave do pensamento de Renato Shimmi.
A VJ, Cecília Luchessi, também participa do esforço artístico coletivo, ao responsabilizar-se pelo apoio com vídeos, no aparato virtual do álbum.
Produção geral: Bruno Moscatiello; Yuri Grafunkel e Renato Shimmi
Gravado, mixado e masterizado: Estúdio Medusa de São Paulo/SP
Técnico de áudio: Janja Gomes
Capa, encarte, Lay out/arte final: Zé Otávio Zangirolami
Baseado na obra filosófica: Sob os Olhos de Eva, de Renato Shimmi
Formação do Kaoll nessa obra
Bruno Moscatiello: Guitarra e violão
Yuri Garfunkel: Flauta e Viola caipira
Gabriel Catanzaro: Baixo elétrico e acústico
Rodrigo Reatto: Bateria
Janja Gomes: Percussão
Fabio Leandro: Teclados
Gabriel Costa: Baixo e Glissando Guitar
Para conhecer melhor o trabalho do Kaoll, acesse:
Página no Facebook:
https://www.facebook.com/kaoll/
site oficial:
canal do youtube:
https://www.youtube.com/user/drguitarra