Por Luiz Domingues
O Klatu é uma banda com muitos predicados, isso é inegável. Eu já tive a oportunidade de elencar as suas muitas qualidades artísticas, em matéria escrita tempos atrás, quando estabeleci uma resenha “mezzo” biográfica dessa banda, ao falar sobre os seus discos até então lançados (“Em Busca do Rock Infinito”, de 2008 e “Um Pouco Mais Desse Infinito”, de 2013”), além de sua trajetória em torno desse conceito contínuo do mote sobre o tema do “infinito”.
Em 2017, o Klatu lançou o seu terceiro álbum e fechou a sua trilogia temática ao nos mostrar: “Que Seja Infinito Enquanto Vivo”. Antes de avançar na resenha, cabe ressaltar que não se trata de um álbum ao vivo, como talvez o leitor possa ser sugestionado a deduzir pelo seu título. É, na verdade, “vivo”, no sentido do antônimo de “morto”, embora, no âmago da obra, a ideia seja fazer a opção pelo meio termo entre as duas condições, ao mencionar o dito zumbi, o “morto-vivo”. Contudo, não em sentido fantasmagórico a evocar a literatura clássica do terror, mas ao usar e abusar da metáfora do zumbi, no intuito de criticar os rumos atuais da sociedade moderna e as suas múltiplas formas de condicionamento e manipulação da parte das ditas “forças ocultas”, que, aliás, nem tão ocultas o são na atualidade.
Para início de conversa, o Klatu assume que esse seu terceiro disco é uma “Opera Rock”, fechada em um tema único e com suas canções a seguir o libreto de uma história. Não é para qualquer um aventurar-se em um conceito mais ambicioso desse porte, mas o Klatu amadureceu muito, e banca-se nessa ousada iniciativa, pelo que ouvi e li no decorrer do novo disco.
E para provar o que digo, já menciono um dado criativo ao extremo ao tratar-se de uma obra temática: apesar dessa estrutura, o Klatu quebra o protocolo e no libreto, não há personagens estabelecidos. Trata-se da história de um homem, e a pergunta é inevitável: que homem ? Pois é, refere-se a uma espécie de “alma mater” onde cada ouvinte/leitor pode identificar-se à vontade e até vestir a sua armadura ou carapuça, como queira.
Essa representação simbólica da humanidade, canta o que sente e enxerga tudo, e nesse aspecto, o que vislumbra é sombrio, a falar de uma sociedade que oprime e esmaga as individualidades; desdenha dos sonhos, e oferta apenas o pesadelo como uma opção concreta. Para sair dessa, só a morrer ou a contar com um absoluto lampejo de loucura e arrojo, ao romper com tudo.
O cerne da questão é esse: a extrema manipulação e entenda o óbvio, ou seja, a massificação bovina a serviço de uns poucos interessados em que a sociedade permaneça nesse estado de coisas. O clamor em si não é uma novidade, mas a maneira artística pela qual o Klatu expôs tal conceito, aí sim, é bastante criativo.
Nada é mais significativo para ilustrar o filme de zumbis em que vivemos no cotidiano, do que verificarmos pessoas a caminhar pelas ruas, absortas pela ação hipnótica de seus “smartphones” e é por aí que o Klatu critica fortemente a ação dos marqueteiros; os malfadados “formadores de opinião”, agências governamentais e mídia, e nessa lógica, parece que a internet, que na prática deveria ser livre, acaba por tornar-se mais uma arma de manipulação sórdida. A quem devo apoiar agora? Vou bater a minha panelinha na varanda gourmet do meu apartamento, a favor de A ou B? Tanto faz, pois você já “dançou” só por ter obedecido a ordem para ser um “percussionista útil”, digamos assim…
Sobre a obra em si, o amadurecimento do Klatu também mostra-se concreto. O dois discos anteriores são ótimos, mas neste terceiro, é nítida a firmeza adquirida, com o benefício da experiência acumulada. Agora assumido como um duo, através do casal formado por: Leco Peres (baixo; voz e percussão), e Carol Arantes (voz e percussão), o Klatu recrutou músicos de apoio de alto nível e o resultado sonoro impressiona pela qualidade. Todas as faixas tem um apontamento sobre o desencadeamento da história contada, mas é muito sutil, a expressar um sentimento, tão somente.
Na primeira faixa, o conceito do “espaço-tempo” anuncia a canção denominada: “Sobrevivendo”. Tema instrumental e curto, tem a função clara de ser uma “Overture”, típico recurso da tradição das óperas convencionais, e também usado em diversas “Óperas-Rock” famosas nos anos 1960 & 1970 (“Tommy”, “Quadrophenia”, “Victoria”, “Jesus Christ Superstar” etc). Com uma intervenção forte de bateria em ritmo tribal e teclados a fazer uso de timbres modernos, lembra algo “Techno” com uma suposta raiz remota no “Krautrock” dos anos setenta. A destacar-se, há a presença de um riff forte, com nítida orientação, Hard-Rock, e um solo de guitarra sucinto, mas de arrepiar.
“A Ameaça” anuncia o próximo tema, claramente a denotar o personagem em momento de alerta, ao deparar-se com a realidade perigosa em que se cerca. A canção chama-se: “Terra de Zumbi” e, claro, a alusão dá-se pelos milhões de seres controlados pelas corporações que norteiam a sociedade massacrante e trata-nos como meros códigos de barras ambulantes e “consumidores” de alguma coisa, para o benefício deles, exclusivamente.
Com clima de balada, lembra o Pink Floyd em alguns aspectos. Gosto das delicadas tessituras harmônicas realizadas pelas guitarras e com detalhes bem interessantes, entre os quais o uso de caixa Leslie, sempre agradabilíssima aos nossos ouvidos. Gostei muito de um riff mais pesado, a lembrar bastante a maneira pela qual o Jethro Tull expressava a sua volúpia costumeira, ao passar da docilidade Folk para o Hard-Rock mais incisivo. Acho que o Klatu acertou nessa transição, também. Na letra, Carol escreveu versos fortes. Destaco: “Marionetes, manipulados, sorrisos falsos, desesperados, morrendo todos os dias sem perceber”…
Chega a terceira canção e o momento da história é o da “epifania”. Hora para sonhar livremente e, assim, a canção, “Livre Sonho Deszumbizante” é quase uma súplica, de quem tomou consciência do massacre externo e clama por liberdade.
Impossível não notar que exista uma intenção em estabelecer um acróstico nesse título e isso remete aos anos sessenta em múltiplos exemplos (“Lucy in the Sky With Diamonds”; “Lindo Sonho Delirante” etc), portanto, drogas à parte, saudade do tempo em que muita gente mostrava-se interessada em empreender esforços em prol do dito “Open Mind/Mind Expansion” e, no caso, o personagem tem essa epifania atualmente, ou seja, através de uma época muitíssimo mais hostil e fechada para tais ideais.
A canção é boa, tem um swing inspirado nos anos sessenta no formato da sua parte A, embora predominem timbres modernos e não haja a preocupação de soar “retrô”, deliberadamente. O final da música tem uma clara influência do Rock Progressivo setentista, e ouso dizer, reveste-se de uma aura que lembra o trabalho do Gentle Giant. Ao cantar: “Esse sonho é um pouco mais que real, e o caminho é interdimensional, retomar aquele velho ideal, do acorde gravitacional”, tal fala traduz bem a epifania proposta.
Na quarta faixa, há uma crítica interessante. Sabe aquele sujeito bem intencionado, mas que no fundo está tão equivocado quanto o ardiloso que sabe o que está a fazer? Pois é, tem muita gente nessa condição, que nada a favor da maré imposta, todavia, ao considerar que tem senso crítico e consciência, independência de ideias etc. e tal, mas na verdade está na vala comum dos manipuláveis, aquele tipo de ser humano “bonzinho” que vai às ruas para clamar pela moralidade na política, mas a usar uma camiseta com o distintivo de uma das instituições mais corruptas do planeta, porém, lógico, é um inocente e nem sabe disso na prática… na letra, isso é explícito: “e de repente eu me deparo, um coletivo muito legal, parecem certos, inteligentes, são os melhores para nos salvar”…
Nessa canção, chamada: “Volta à Terceira Dimensão”, a ideia lançada é a do “conflito”, ou seja, o choque do personagem após a epifania da faixa anterior, ao deparar-se com a dura realidade telúrica. Mais uma vez, eu senti influência forte do Krautrock setentista, logo no início, e doses maciças de Rock Progressivo mais melódico, novamente a evocar o Gentle Giant e o Jethro Tull. São partes mais pesadas, com um pé no Hard-Rock. Parecem aqueles interlúdios mais vigorosos dentro de obras como “Three Friends” e “Thick as a Brick”. E tem também uma menção ao Jazz, com o baixo a estabelecer um “andante” clássico do gênero, ao seu final.
“A coligação” é o clima da quinta faixa, denominada: “Zumbis do Bem”. Sim, existem os que tentam debelar-se, porém inevitavelmente fecham-se em sociedades secretas & iniciáticas; exclusivistas etc. Na prática, pensam em estar a ajudar, entretanto, com esse tipo de mentalidade, mais são desagregadores, na prática. Uma pena, a pensar nesse aspecto.
Na sonoridade, essa canção remeteu-me ao som dos artistas da chamada: “Vanguarda Paulista” do início dos anos 1980. Com brasilidade e atitudes jazzísticas proeminentes, a canção traz harmonia com dissonâncias e quebradeira rítmica generalizada, a lembrar o som de Itamar Assumpção & Isca de Polícia; Arrigo Barnabé e sobretudo o Grupo Rumo, ainda mais ao associar-se a voz de Carol Arantes em comparação à Ná Ozetti; Suzana Sales e/ou Vânia Bastos.
O momento é de “reação” e a canção: “Antes Só”, mostra a tomada de consciência do personagem, ao levá-lo a fazer crer que a solução seria contar com as suas próprias forças. Dura realidade, eu sei, mas se chegamos nesse ponto, resta-nos lembrarmos do Paulo Vanzolini, isto é: “não chore, mas levante; sacuda a poeira, e dê a volta por cima”.
Mais uma vez o Klatu recorre a um ótimo riff, com ritmo todo quebrado, ao mostrar sofisticação na composição e também uma parte mais pesada, que lembrou-me o trabalho do grupo, Bachman Turner Overdrive, por que traz o elemento Pop, também, marca registrada daquela boa banda canadense. O personagem, através da voz de Carol Arantes, dá o recado quando diz: -“ prefiro seguir sozinho do que não me mover”. Muito bom, apesar dos pesares, pois ainda sobrou um pingo de humanidade dentro desse combalido zumbi pós-moderno.
“O vislumbre” é o sentimento e o nome da canção: “Hora de Acordar”. Aqui, o recado é instrumental e trata-se de um tema versado pelo Jazz-Rock setentista, bem naquela ideia da pegada Rocker x swing da Black Music. Parece música de um disco qualquer do “Return to Forever” e impressiona pela técnica e balanço.
Hora de dar nome aos bois, o grande “Leviatã Pererê” é a canção sob a égide da “repressão”. -“Perseguir sonhos é um desacato a quem quer poder”, diz um verso da letra. Isso mesmo, quem ousa não seguir o padrão imposto, incomoda o sistema. Nessa canção, os ecos de uma MPB hippie dos anos setenta são nítidos. A psicodelia nordestina é representada fortemente e há um sabor poético a lembrar o som dos Secos & Molhados, também. Portanto, evoca aquele tempo bom onde ligava-se o rádio e havia boa música a tocar regularmente…
Um libelo é dado através de “Acorde aos Vivos” e no libreto é a hora da “esperança”. Ufa, então nem tudo está perdido?
O pesadelo da ultra manipulação ainda dá brecha para ser revertido? Não vivemos integralmente o Big Brother de George Orwell, mas ainda dá tempo de expurgar o BBB da mediocridade televisiva? Que alívio!
O som é dos mais agradáveis nessa canção, a lembrar o o Rock’n’ Roll com sotaque “cockney” e cru ao estilo do Slade, direto e reto, no começo da canção. Depois existe o interlúdio que lembra o Tutti Frutti de Luiz Carlini & Cia., dos bons tempos e tal reminiscência agradável, reforça-se quando ouve-se os backing vocals cheios de “uh uhs” afinados e doces, para remeter aos gêmeos vocalistas, Rubens & Beto Nardo. E, por fim, eis que surge uma dose de sofisticação ao mostrar um looping que propõe que rumemos ao “infinito”, bem ao estilo do Gentle Giant. É belo e grandioso.
Chegamos ao final da obra e advém uma surpresa dupla: não há final feliz, todavia, existe espaço aberto para o ouvinte fazer a sua análise pessoal à vontade, com o tema “lugar-comum”. O Klatu deixa o recado para que você, ouvinte & leitor, analise e chegue à sua própria conclusão. O que fazer da sua vida depois de tomar conhecimento dos fatos expostos? Vai deixar-se levar em ser um zumbi sem face na multidão, ou vai “deszumbizar”?
E a segunda surpresa da canção que se chama: “Vida Modesta e Fecunda’, que se trata de um tema instrumental, com característica acústica, a usar apenas violão; percussão leve e ruídos silvestres ocasionais. E a voz, apenas onomatopaica, entoa um vocalise para ornar uma canção sem letra, apenas a transmitir sentimento, sem mensagens explícitas para ser raciocinadas.
A concepção geral, produção artística e material ficou a cargo do casal que comanda o Klatu, Leco Peres e Carol Arantes. A produção musical de estúdio sob a supervisão de Daniel Iasbeck. Gravado no estúdio Lab Mancini entre o final de 2014 e 2016, de São Paulo. Canções de Leco Peres (há uma em parceria com Daniel Iasbeck), e letras de Carol Arantes. Técnico de gravação; mixagem e masterização: Raphael Mancini. Diagramação do encarte: Leandro TG Mendes.
A capa merece uma citação à parte, obra de Adriano Ticiano (criação e lay-out final), mostra uma espécie de robot enferrujado em meio a uma paisagem ultra urbana, deveras rude, e o tal Ser a estar no uso de seu indefectível telefone celular, a grande coleira a favor dos que abduzem-nos. Abertamente inspirado nas obras de Tarsila do Amaral, “Abaporu” (1928) e “Os Operários” (1933), do britânico, Derek Riggs, trata-se de uma bela ilustração e que chama a atenção, sem dúvida. É soturna, mas é perfeita para ilustrar o tema proposto pela banda nesse álbum.
Ouça a faixa de abertura do álbum, “Sobrevivendo”
Abaixo um “teaser” anunciando o lançamento do álbum do Klatu, “Que Seja Infinito Enquanto Vivo”.
Leco Peres mostrou linhas ousadas e com belos timbres de baixo. Carol Arantes na voz e na criação das letras, a mostrar muita contundência e crítica ácida, porém bem embasada e firme em suas convicções. A apoiar o Klatu, Daniel Iasbeck, além da produção musical, tocou todas as guitarras, violões e teclados. A sua atuação é brilhante, ao demonstrar virtuosismo e muita criatividade nos instrumentos que tocou, além de colaborar também com vocais. Sérgio Marchezoni tocou uma bateria muito precisa em todas as faixas (exceto na última, acústica) e demonstrou muita técnica.
No áudio, o disco mostra-se bem moderno, pela pressão sonora, uso de recursos tecnológicos atuais e timbres.
No cômputo geral, “Que Seja Infinito Enquanto Vivo” revela-se uma obra coerente com sua proposta; forte enquanto manifesto de uma causa, e muito rica musicalmente, com diversas nuances admiráveis. A banda disponibiliza as suas páginas no Facebook e YouTube, para o leitor obter informações gerais e links para ouvir o trabalho gratuitamente em plataformas musicais como o Spotify, por exemplo.
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