Por Luiz Domingues
Os tempos atuais são tão desoladores no âmbito cultural em geral no Brasil e no mundo que chega a causar estupefação em haver ainda artista que se empenhe em perpetrar obras com substância artística inquestionável e, nesse caso, agrega-se um fator a mais a enaltecer-se: a incrível resiliência que demonstra ter, com tal determinação.
É o caso do sexteto “Marcenaria”, que produz um som de extrema complexidade e baseado em um caldeirão tão vasto de boas e diferentes influências, que torna o seu trabalho um verdadeiro exemplo de que se ficarmos absortos nos lamentos pelas redes sociais, em nada nos ajuda a vencer a guerra contra o baixo astral do show business dominado por gente deliberadamente comprometida com a subcultura, anticultura e afins. O negócio é dar apoio a quem está a trabalhar firme, mesmo sem respaldo algum dos grandes meios de comunicação e, mesmo assim, a mostrar o seu valor, que é muito grande, caso dessa banda.
Neste seu primeiro trabalho fonográfico, o Marcenaria transborda em sua musicalidade riquíssima em todas as faixas, ao estabelecer uma amálgama forte entre a urbanidade e as tradições rurais do Brasil.
As músicas interligam-se, sem que, no entanto, o disco seja assumidamente conceitual ou baseado no formato de um libreto de “ópera”, mas simplesmente a conexão existe e tudo é reforçado pelo apoio de um esmerado trabalho gráfico que mescla o conceito “Comics” ou História em Quadrinhos, melhor a explicar.
Não se trata de nenhuma novidade estética, muitos artistas já usaram desse expediente anteriormente, basta uma rápida consulta aos registros na história do Rock, contudo, não vejo mal algum em reutilizar-se o mesmo recurso e basta usar de criatividade para deixar a marca pessoal, e é o que acontece com esse trabalho, mediante o apoio de ilustrações de qualidade e texto amarrado inteligentemente, a usar muito bem as letras das canções.
Sobre o nível instrumental dos componentes, qualidade das canções e sofisticação dos arranjos, sob esses parâmetros citados, é altíssimo. Não me surpreendeu em nada, já esperava por isso quando recebi o disco em mãos, e como se não bastasse tal fato, ainda criaram vocalizações em harmonia muito sofisticadas, ou seja, algo muito fora do padrão do que se ouve no mundo mainstream das emissoras de rádio FM ou na televisão e devo observar, ainda bem!
Os rapazes não estão nem aí para os padrões da música pasteurizada que os marqueteiros determinam que o povo vá ouvir. Maravilha, a preocupação é fazer arte e eles cumprem o seu objetivo com galhardia e devo acrescentar, hombridade artística.
Sobre as faixas, são doze canções muito intensas, a apresentar sofisticação musical ímpar, belas resoluções no campo da harmonia, além de melodias e letras a buscar signos do folk brasileiro (entenda isso pelo sentido amplo do termo, “Folk”), ao misturar à urbanidade/modernidade das grandes metrópoles.
O trabalho de Hermeto Pascoal, creio que também encaixar-se-ia como influência. Vocais em harmonia muito bonitos e o som de viola caipira a passear junto com os sopros intermitentes, são muito ricos. E fora o fato de que frases agressivas executadas por guitarra, baixo e bateria, com instrumentos de sopros a cortar tudo em passeios assim, são puro Prog Rock, na tradição de bandas como o “Gong” e “Van Der Graaf Generator”, entre outras que usavam tal prerrogativa, certamente.
A faixa seguinte, “Meio Tom Acima do Chão” tem muita inspiração na dita psicodelia nordestina dos anos setenta. Não obstante o fato de evocar Lula Cortes, há elementos sofisticados que muito lembram o Jazz Fusion com acento brasileiro de Egberto Gismonti, pleno de regionalidades temáticas e virtuosismo.
As intervenções de sopros são belas ao extremo, ao garantir um colorido ininterrupto, como se uma revoada monumental de pássaros coloridos passasse pela janela enquanto ouvimos a faixa. Gostei muito de um solo de guitarra ao estilo, “backwards”, que é executado sobre uma batida tribal e a linha de baixo opera sob um “looping” meio que caribenho, em seu estilo. Já a parte final vai para a quebradeira rítmica total (ótimo!). Chamou-me a atenção um trecho da letra:
“Lei de Newton,
debaixo da castanheira,
um banzeiro na minha cabeça…
as vezes pareço andar meio tom acima do chão”…
Acho que uma imagem assim espelha bem a proposta da banda em buscar a poética das raízes, sob o viés da amálgama urbana.
E a letra/linha melódica e também a sua interpretação, eu diria, detém uma lembrança forte do trabalho do Zé Rodrix, ao meu ver, bem daqueles discos solo dele, dos anos setenta, que se o leitor nunca ouviu, conclamo-o a procurá-los no YouTube. É aquele toque de urbanidade que o saudoso, Rodrix, tão bem sabia dar como o seu recado e o Marcenaria parece ter recuperado tal prerrogativa, ainda bem.
- “É hora de virar o disco, esse lado já se acabou. Levante o corpo do sofá e o braço da vitrola”.
Muito boa a mensagem, faça alguma coisa edificante, senhor “abduzido” das redes sociais! Musicalmente, essa faixa fez lembrar-me bastante o som da banda Prog Rock brasileira dos anos setenta, “Terreno Baldio”, pela mescla de virtuosismo instrumental “Progger”, com brasilidades. Sopros e violas caipiras passeiam o tempo todo, com muita desenvoltura.
A faixa seguinte, “O Trem” tem um sabor Blues, todavia pelo viés de um “quase” reggae.
A proposta da letra lembrou-me o Zé Ramalho, de seus mais inspirados trabalhos e um solo de guitarra, de arrepiar, trouxe o elemento Rock, com muita força.
Admirável a quebradeira ao longo das mudanças bruscas no tema. Tem algo de experimental bem na tradição dos compositores malditos da MPB setentista, bem naquela predisposição nonsense de artistas como Tom Zé; Jards Macalé & Walter Franco, com direito a intervenções de vozes e risadas como elemento onomatopaico. Muito bom, meninos, sabemos desde os anos setenta que loucura pouca é bobagem!
“Fusa Roceira” tem uma base harmônica bastante sofisticada, com ótimos vocais em harmonia, percussão criativa e lembrou-me bastante os primeiros trabalhos do Alceu Valença, quando este era menos “Pop” e mais instigante como artista, eu diria. As intervenções de guitarra ao final, lembraram-me o som cerebral do genial guitarrista do King Crimson, Robert Fripp, e eu também gostei muito do final épico, que me despertou a lembrança da sofisticação do “Wishbone Ash”. Muito boa a intervenção com o piano, incluso.
“Pessoas de alumínio e cobre, presas de jacaré e pedra. Só para descobrir. Mais um ponto do encerado pra eu arrochar. Mais um ponto do mistério pra eu descobrir”…
Uma letra que deixa bem clara a dicotomia da visão da vida moderna, pelo viés da sabedoria caipira. A pensar-se…
Gostei de mais uma ação da onomatopeia neste disco, que me fez recordar de uma linhagem melódica da MPB que simplesmente não existe mais e até meados dos anos 1960 era ouvida em profusão no rádio e na TV.
Gostei bastante da linha de bateria e baixo, com um sentido de preenchimento de espaços muito criativo. Fora as múltiplas convenções estabelecidas, super técnicas. Tem climas jazzísticos acentuados, igualmente.
Gostei muito de uma desdobrada rítmica proeminente, e, logo a seguir, um solo de guitarra ultra-influenciados pelos anos sessenta, que dá a impressão que guitarristas como Randy California, Mike Bloomfield ou Jorma Kaukonen foram trazidos por uma máquina do tempo, direto do palco do Fillmore West, de San Francisco, em 1968, para gravar em estúdio com o Marcenaria. Muito legal. Ótimas as convenções finais e com o belo solo de sax, dobrado.
A última canção do álbum tem um título conclusivo: …”Mas no Final”…, uma ideia interessante, sem dúvida, em dar ao ouvinte um norte do que pretendem com a obra. Na letra, fala-se:
“Olhou para si, olhou para o céu. E se pôs a lembrar tudo o que aconteceu quando então saiu de si em sua Marcenaria”…
Sobre a sonoridade dessa canção, esta soa como um baião bastante sofisticado e com elementos no arranjo, que muito recordou-me o som do “Ave Sangria”, uma banda nordestina dos anos setenta, infelizmente pouco citada, mas muito relevante para a história do Rock Brasileiro. O final da canção contém mais uma vez um sabor progressivo, muito bonito, ao meu ver.
Além da versatilidade da banda, ainda foram convidados músicos para colaborar, casos de Claudia Rivera (Flauta transversal), Clara Andrade (percussão) e Renato Amorim (guitarra).
Gravado no estúdio X, com Giorgio Karatchuk na operação do áudio, Thiago Nacif na mixagem e André Ferraz na masterização. Criação e layout final de capa e encarte por Augusto Mendonça. Produção executiva por Marcelo Spindola Bacha. Selo: Melômano/Rock Company.
A qualidade musical da banda impressiona muito, tanto no nível instrumental quanto vocal, além da elaboração de arranjos sofisticados e letras com poética muito além da pasmaceira pasteurizada, observada no panorama da música mainstream dos tempos atuais de 2017.
Contato direto com a banda, via E-mail:
O Site oficial da banda:
https://www.bandamarcenaria.com
O Link do álbum na íntegra, no You Tube:
https://www.youtube.com/watch?v=7ab_px8fAOY
Facebook:
https://www.youtube.com/watch?v=7ab_px8fAOY
Luiz Domingues é músico e escritor